Por Carolina Iara de Oliveira.
a academia é adoecedora mentalmente, mas o metiê da saúde coletiva consegue ser um pouco pior. Não acredita? Veja esse meu testemunho, q vou escrever em segunda pessoa pra te colocar no meu lugar: vc, travesti preta, cientista social, fica anos estudando sociologia, antropologia, e a saúde pública num sentido estrutural e sociocultural, passa no fucking mestrado, tendo q dar satisfação científica pra orientadora, comunidade acadêmica, pros organizadores de coletâneas… Tu, que vais qualificar, q tens q fazer mil atividades complementares, etcetera e tal… ao mesmo tempo q transiciona de gênero, toma hormônios, tem pirações com os pêlos no rosto e faz laser (q dói bastante sim), q começa processo de mudança de documentos e tal e coisa…
daí tu — antropóloga and socióloga que vende florais e usa roupas ‘cool’ na mente de muita gente, mas na verdade veste jeans com blusinha e compra[va] roupa no Brás — escreve um texto com uma análise sobre as distâncias e aproximações entre aids e coronavírus, num sentido de analisar o impacto cultural e subjetivo na população, especialmente a LGBTI+. Eu fiz isso, num texto que escrevi pro esquerda online, e que tbm publiquei no meu Medium hoje (links no final). Nesse mesmo texto, avanço para uma crítica à crença de que pessoas vivendo com HIV estão “de boa” na epidemia do Corona, simplesmente pela ausência de pesquisas biomédicas robustas sobre a interação dos dois vírus no corpo humano… e fecho o texto com medidas políticas q considero de suma importância para preservar nossas vidas, as vidas posithivas…
pois bem. Daí vem um fulano, branco, homem, cis, ISENTÃO, com foto de avental branco dizer pra mim que “você ~NÃO PRODUZ CIÊNCIA~”, só produz ativismo. “Quero saber de ciência, não de política”, diz o isentão positivista. “Quero saber da vulnerabilidade de quem vive com HIV, não de ativismo” — continua. Justo no texto que listo o tempo inteiro as vulnerabilidades sociais q necessitam de análise… e ações. Ele não é o primeiro, nem será o último. Tenho uma lista grande de vezes que minha produção como cientista social e como ativista foi deslegitimada.
olha… eu não sei se rio ou se choro da noção tão reduzida que esse pessoal tem sobre Ciência. A pessoa nunca deve ter ouvido falar de Epistemologia, de filosofia, de crítica da razão, dialética materialista, nada disso. Mas se arvora a me reduzir a não-cientista. Ou se ouviu, não prestou atenção, pq tava ansioso para chegar “à Ciência de verdade”. Às ciências duras, sem nem saber q esse próprio termo vem do machismo da Ciência positivista (isso pq não comecei a falar do racismo dela).
mas não é novidade nenhuma uma mulher negra de esquerda, ainda mais uma travesti negra, ser deslegitimada pela ciência que produz, pra ser taxada de “ativista” (Lelia Gonzalez já falava isso lá nos anos 80). Afinal, só a “neutralidade” produziria ciência, certo? A questão é que, em geral, quem está em cima no muro, na verdade está ao lado do dono do muro… O triste é saber que, no fundo, eu posso ter sido convidada para ir na Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) em Brasília, posso ter sido premiada por ativismo, posso ta no mestrado, posso fazer mil laser na cara e tomar hormônios, mas eu AINDA continuo sendo uma travesti negra. E comunista, que é pra ferrar mesmo.
MUITO QUE BEM. Mas se tem uma coisa que o “couronavyrus” está mostrando sobre saúde e ciências biomédicas é que a saúde coletiva, a saúde pública é interdisciplinar, envolve várias ciências e envolve também, olha só… POLÍTICA e TRABALHO. Todo mundo preocupado com sua saúde, mas também com seus empregos e renda. Envolve disputas políticas e disputas de epistemologia. O coronavírus veio pra mostrar que respostas biomédicas sem a política correta não impedem uma catástrofe. Mostra que quarentena é uma questão que envolve até segurança pública, economia, cultura, enfim… que quando falamos de saúde estamos falando da reprodução social das condições de se viver no mundo! Achar que uma análise social disso não é ciência, é algo muito reducionista. E espero que o corona possa abrir mentes — antes q seja tarde.
e vc aí, progressista e tal, que entrou nas universidades nas áreas médicas… não seja esse profissional. Porque é justamente pelo modelo de sociedade e política é q estamos nessa crise sanitária sem precedentes.
texto: https://esquerdaonline.com.br/…/hiv-e-coronavirus-distanc…/…
também no medium: https://medium.com/…/hiv-e-coronav%C3%ADrus-dist%C3%A2ncias…
EDIT 1: fazendo justiça a minha orientadora q me deu bastante força nessa transição de gênero. E dar satisfação à comunidade acadêmica é algo do rito da Academia, q eu topei… e sempre encontramos gente bacana q nos ajuda bem.