Por Beatriz Pagliarini Bagagli.
A transição de gênero refere-se ao processo pelo qual pessoas trans avançam quando se deslocam para um papel de gênero que difere do associado ao sexo designado no nascimento. A transição pode incluir aspectos sociais (adoção de um novo nome e pronomes de tratamento), jurídicos (retificação de documentos de identificação oficiais) e médicos (terapias hormonais e cirurgias). Podemos considerar, portanto, a destransição como a volta para o papel de gênero que coincide com o sexo designado ao nascimento que ocorre depois de um processo de transição. A destransição, assim como a transição, pode envolver aspectos médicos e/ou sociais destinados a reverter uma transição de gênero. Iremos designar neste texto como pessoas destrans aquela pessoa que passou pela destransição.
Nem todas pessoas destrans se arrependem da transição e/ou de eventuais alterações corporais. Destransição não significa necessariamente arrependimento e sofrimento. Mas, de fato, pode acontecer. Arrependimento pelas alterações corporais, contudo, é bastante raro. A maioria das pessoas que destransiciona é apenas temporariamente em razão da transfobia e volta a viver como trans – essas pessoas nem ao menos costumam deixar de se identificar como trans durante o período de destransição. Algumas, por outro lado, podem realmente destransicionar porque descobriram por elas mesmas que se identificam com o gênero designado ao nascimento.
É um erro assumir que os interesses das pessoas destrans seriam antagônicos ou irreconciliáveis com os interesses das próprias pessoas trans. As pessoas podem fazer um discurso sensacionalista a respeito dos perigos do acesso a alterações corporais, mas falar isso por si só nos impede de compreender aspectos mais importantes a respeito das reais necessidades das pessoas que destransicionam. Em discursos transfóbicos, casos de destransição são usados apenas para ilustrar os “perigos” da transição – ao invés de realmente lutar para a melhoria da saúde deste grupo vulnerável.
Pessoas que destransicionam precisam de recursos e informações para terem acesso a cuidados de saúde específicos. Elas podem precisar de recursos jurídicos caso tenham feito retificação de seus documentos e desejam destransicionar. Elas devem ter esse direito garantido.
Pessoas que destransicionam podem ter usado hormônios e terem efeitos físicos desses hormônios que fazem com que uma leitura social no gênero designado ao nascimento seja mais difícil. Uma mulher que destransicionou pode ter feito uso de testosterona e ter pelos faciais e engrossamento de voz – e agora precisa lidar com o fato de que se identifica como mulher.
Vejam bem: qual outro grupo de mulheres que precisa lidar com efeitos de testosterona? Mulheres trans. Mulheres que destransicionaram e fizeram uso de testosterona na verdade têm muito em comum com mulheres trans – mas a transfobia pode te impedir de compreender isso. O mesmo pode ser dito a respeito de homens destrans que utilizaram hormônios femininos e serem lidos como homens trans.
Quando digo que temos algo em comum estou dizendo a respeito de demandas políticas, de luta contra normas de gênero que atingem todas as pessoas que são vistas como estando em não conformidade de gênero. Muitas pessoas destrans passam a se identificar como não binárias ou genderqueer.
Tanto uma mulher trans como uma mulher destrans vão ter que lidar com dificuldades sociais muito semelhantes, porque ambos os grupos vão estar expostos a visão de que a aparência de seus corpos vai “contra” as suas identidades de gênero. A luta para que ambas não sejam constrangidas e discriminadas é semelhante. O preconceito contra pessoas que são lidas de alguma forma destoante da norma é comum a ambos os grupos. Pessoas trans e destrans têm interesse em reivindicar a autonomia corporal e a retificação facilitada de seus documentos (facilidade tanto para retificar os documentos em uma transição quanto em uma eventual destransição).
Pessoas podem destransicionar por motivos ideológicos (como adesão a ideologia TERF ou religiosa e terem passado por terapias de conversão). Neste caso, a destransição, assim como a própria transição, são entendidas como desfechos a serem evitados tanto quanto possível, ao invés de serem possibilidades legítimas de serem exploradas. Estas pessoas estão mais propensas a se arrepender da destransição e voltarem a se identificar como trans caso tais ideologias, religiões ou movimentos se tornem, posteriormente, inconsistentes com suas vivências e reais necessidades – obviamente isso pode ser profundamente traumático. A internalização da transfobia que estas ideologias promovem é capaz de produzir traumas profundos. Essas experiências são relatadas de forma minuciosa por Ky Schevers e Lee Leveille no Health Liberation Now!
Muito se discute a respeito dos potenciais danos a respeito da transição de gênero para pessoas que se arrependem e destransicionam. No entanto, é preciso levar em consideração o trauma gerado pelos discursos transfóbicos que impedem autonomia corporal para todas as pessoas de gênero diverso e estabelecem a cisgeneridade como norma. A destransição também pode ser traumática e não “funcionar”. Pessoas destrans podem continuar tendo que lidar com a disforia de gênero – e nem sempre a destransição, sobretudo a destransição ideologicamente motivada, de fato é a solução para os seus problemas.
Existem de fato ainda poucas pesquisas científicas sobre destransição, assim como poucos recursos terapêuticos para as pessoas que destransicionam, principalmente para aquelas que destransicionam em função da transfobia, de terapias de conversão e da internalização de ideologias anti-trans, o que alimenta a ação de grupos ideologicamente motivados pela cisnormatividade sobre este grupo de pessoas vulneráveis, com o objetivo de divulgar suas histórias como exemplos dos supostos “perigos” da transição de gênero. Schevers reflete sobre a possibilidade das pessoas que destransicionam tenderem a adotar a ideologia dos grupos que os apoiam, tendo em vista que o apoio e recurso às pessoas que destransicionam é precário e escasso.
Em razão da falta de recursos e informações, as próprias pessoas que destransicionam podem adotar crenças e posicionamentos de grupos favoráveis a abordagens reparativas e até mesmo transfóbicos, o que pode, por sua vez, suscitar desconfiança no interior do próprio movimento trans e atrapalhar cronicamente a formação de políticas de aliança e suporte mútuo. Pessoas que destransicionaram podem projetar equivocadamente as próprias experiências, incluindo as frustrações, ressentimentos, arrependimentos e sofrimento decorrentes de suas transições sobre as vidas de pessoas trans e equipes médicas, principalmente aquelas pautadas na abordagem afirmativa. Em função disto, estas pessoas podem se engajar em movimentos que militam ativamente contra o acesso a recursos para transição de gênero, defendendo que nenhuma pessoa deveria transicionar e/ou que todas as pessoas trans deveriam destransicionar. Para tanto, podem utilizar as suas próprias experiências pessoais para justificar e embasar os seus posicionamentos.
Caso façam parte de grupos de militância anti-trans, elas são estimuladas a enquadrar suas experiências de destransição como uma prova de que nenhuma pessoa trans pode se beneficiar da transição de gênero e utilizá-las para a defesa de políticas que visam proibir o acesso a cuidados médicos afirmativos, generalizando uma experiência negativa de transição de gênero para a população em geral. Esta generalização é flagrantemente equivocada, por isso é tão importante que a mídia não incorra em narrativas sensacionalistas sobre o tema. Schevers observa que o fato das experiências relacionadas a transição e destransição não serem vistas como experiências simetricamente generalizáveis no debate público expressa um viés cisnormativo:
Muitas pessoas ficariam terrivelmente ofendidas se um homem trans que antes viveu de forma infeliz como uma lésbica butch argumentasse que todas as lésbicas butch poderiam fazer uma transição bem sucedida e viver como homens trans. Mas muitas destas mesmas pessoas pensam que está perfeitamente bem se uma mulher destrans declarar ou insinuar que todas as pessoas transmasculinas poderiam felizmente destransicionarem, caso quisessem.
No interior de grupos anti-trans, as pessoas destrans também são frequentemente encorajadas ou mesmo pressionadas a permanecer destransicionadas se cogitarem a possibilidade de voltar a se identificar como trans. Pessoas trans e/ou de gênero inconforme que se engajaram em discursos anti-trans a respeito da destransição e/ou passaram por experiências de destransição ideologicamente motivadas e voltam posteriormente a se identificar como trans e/ou deixam de defender posicionamentos anti-trans podem vivenciar diversos sintomas de sofrimento mental, riscos e danos à própria saúde mental, tais como o aumento da disforia de gênero durante o período de destransição e o sentimento de vergonha e arrependimento de ter “traído” o grupo de pessoas trans. O discurso de grupos anti-trans que politiza a destransição como caminho correto a ser seguido por todas as pessoas também pode gerar danos para a saúde, seja de pessoas trans ou destrans.
Grupos anti-trans tendem a justamente focalizar o sofrimento de pessoas que destransicionaram para corroborar seus posicionamentos prévios em relação à transição ao invés de advogarem primordialmente pelo bem estar destas pessoas. Caso as pessoas que destransicionaram acessem recursos de saúde para se recuperarem de possíveis experiências dolorosas e tenham uma qualidade de vida satisfatória, estes grupos iriam prescindir da justificativa capaz de corroborar suas posições anti-trans, como a ideia de que a transição de gênero é capaz de causar “danos irreversíveis”. Schevers observa que grupos anti-trans incentivam que pessoas destrans relatem publicamente os danos que sofreram da comunidade trans e de sua transição (e como, por exemplo, elas perceberam que cometeram um erro e se arrependeram) com o objetivo principal de evitar ou mesmo proibir que outras pessoas iniciem uma transição médica mas pouca atenção é dada às formas efetivas de sobreviver e lidar com experiências traumáticas e superá-las.
A reiteração constante de grupos anti-trans para que pessoas destrans relatem suas experiências em relação à transição como “danos irreversíveis” pode contribuir justamente para a perpetuação do sofrimento deste grupo vulnerável, ao invés da sua superação. A politização da destransição em causas anti-trans pode impedir com que pessoas destrans consigam lidar de uma forma mais saudável com as eventuais experiências traumáticas que vivenciaram.
O grupo de mulheres que destransicionaram Detransitioned Women publicou, neste sentido, uma nota em que insta a todas as pessoas que destransicionaram a não aceitarem apoio financeiro da Alliance Defending Freedom (ADF), um grupo de direita cristã dos Estados Unidos que defende terapias de conversão. Na nota, o Detransitioned Women reconhece que muitas pessoas que destransicionaram podem ter tido a sua saúde negligenciada ou prejudicada por médicos, mas que esta situação, acrescenta, não justifica a ação maliciosa de grupos como a ADF, já que esta associação visa, na verdade, erodir a autonomia não apenas de pessoas trans, mas também de lésbicas, bissexuais, gays e pessoas em não conformidade de gênero, ao invés de contribuir de forma legítima para a melhoria da saúde das pessoas que destransicionaram.
Em suma, é preciso que o movimento trans se solidarize com as pessoas destrans e que recursos de apoio sejam criados e oferecidos para elas. Só assim podemos evitar com que esse grupo de pessoas vulnerável caia na armadilha de reproduzir discursos transfóbicos – que apenas irão perpetuar o sofrimento de todas as pessoas em não conformidade de gênero.