O que o Transfeminismo significa para mim

Esta postagem faz parte da blogagem coletiva da Semana da Visibilidade Trans.

Por Leda Ferreira

Eu ainda me lembro daqueles primeiros meses de pânico silencioso e desespero. Eu tinha me descoberto – e aceitado – como uma mulher transgênera, e minha mente estava cheia de dúvidas sobre como eu faria para transicionar. Como iria arranjar dinheiro para as cirurgias estéticas para me tornar uma mulher bonita. Quanto iria gastar em roupas. Tinha tantas coisas para fazer! Eu não sabia qual fazer primeiro.

Eu precisava começar a poupar dinheiro para fazer a Cirurgia de Readequação Sexual, obter acompanhamento psicológico que me desse laudo de transexualidade, comprar roupas, sapatos, aprender a me maquiar, ter sessões de fono para treinar a voz, etc etc etc. Precisava pensar no futuro. Em como faria para trabalhar e ganhar dinheiro, nessa nova condição em que eu enfrentaria ainda mais preconceito. Havia tantas escolhas para fazer! O caminho a seguir era sombrio e nebuloso.

Assim foram meus primeiros meses após me descobrir trans*. Foram noites sem dormir, angustiada, pensando no futuro, em como eu COMEÇARIA a trabalhar por esses objetivos, sem ter a menor idéia de como começar. Eu não conseguia pensar em outra coisa. Minha mente estava cheia de dúvidas e incertezas: eu conseguiria me hormonizar? Onde arranjaria dinheiro para fazer cirurgias estéticas? Eu realmente queria colocar silicone nos seios, mudar o rosto, fazer implante de cabelo, modelar a cintura e afins. De fato, ainda quero isso tudo exceto modelar a cintura.

Não foi uma época boa. Essa vida de dúvidas e incertezas já bastava para me esmagar. Cada vez que olhava para meu rosto, meu corpo, me odiava cada vez mais. Me via cada vez mais distante do que eu era por dentro. Cada dia era uma possibilidade de suicídio, como forma de terminar esse sofrimento.

Felizmente, entrei em contato com pessoas trans* na internet que me ajudaram a superar isso. O pessoal do Transfeminismo. Aprendi muita coisa com eles. A principal coisa que aprendi, e que me ajudou muito, foi a noção de que TODOS OS CORPOS TRANS* SÃO LINDOS. A noção de body-positive [corpo-positivo], adaptada para a realidade das pessoas transgêneras. A idéia de que o que faz um homem ou uma mulher não é exclusivamente sua anatomia.

Uma das coisas que mais me causava pânico era a idéia de que eu “ainda não era uma mulher”. Graças a essas idéias do Transfeminismo, eu consegui encontrar algum conforto. Entendi que, mesmo durante o tempo em que eu ainda não conseguisse iniciar minha transição, eu era uma mulher, e podia reivindicar esse reconhecimento.

Eu só pude começar a tomar hormônios, e por conta própria, sem acompanhamento, recentemente. Meu corpo está longe de parecer “feminino”, talvez nunca seja lido assim pela sociedade. Enquanto isso não acontece, eu tenho desejos legítimos e genuínos de me identificar como mulher da melhor forma possível, e me engajar nas expressões de gênero que a sociedade aceita como femininas: usar maquiagem, vestidos, sapatos etc. Me envolver em “coisas de mulher”. Enfim.

O fato de eu não fazer nada disso me causava tanto sofrimento quanto o meu corpo. Eu achava que só poderia fazer isso quanto parecesse uma mulher. Tinha medo de, tendo um “corpo masculino”, fazer essas coisas publicamente, e me tornar uma aberração, algo feio e ridículo, motivo de piada. E só tive coragem de fazer isso, e me sentir melhor, após absorver a noção do Transfeminismo de que um homem transexual continua sendo homem, mesmo que mantenha seus seios, e uma mulher transexual continua sendo mulher, mesmo que tenha pênis. Ou voz grossa. Ou seja, careca, como eu sou. Esse pensamento me deu força para, com todos esses atributos físicos, me vestir como mulher pela primeira vez, e passar a viver dessa forma. A trabalhar e sair na rua dessa forma.

Se não fosse pelo Transfeminismo, eu ainda estaria naquela fase de pânico e desespero, me sentindo presa em meu próprio corpo, como se ele me impedisse de ser o que sou. Hoje, posso ser o que sou, mesmo que meu corpo tente ser uma âncora que me impeça de sair do lugar. Eu tenho corpo, voz e resto “de homem”, as pessoas me vêem na rua como uma aberração. Elas nem me lêem como um gay afeminado “pintosinho”, se fosse isso já estaria bom, pois elas estariam, mesmo remotamente, reconhecendo que tudo está vagamente relacionado à minha sexualidade e identidade de gênero. Ao invés disso, elas preferem acreditar que estou sob o efeito de drogas. Ou que sou um maníaco.

Eu espero que algum dia tenha atributos que me permitam ser vista como mulher, ou algo próximo. Pelo menos, algo que as pessoas não precisam temer, uma pessoa inofensiva que só está sendo ela mesma. E só posso ter algum conforto enquanto isso não acontece, por me apegar à noção do Transfeminismo de que todos os corpos trans* são lindos, inclusive o meu. Ele não é como eu quero, e reivindico sim, o direito às mudanças do corpo que sinto que preciso – as que tenho direito por lei, e muitas outras. Porém, ao menos posso ter algum conforto por entender que sou uma mulher, não importa o quanto as pessoas me vejam como uma bizarrice, e meu corpo diga o contrário.

Outra idéia do Transfeminismo que me ajudou muito é a noção de empoderamento das pessoas trans*. Antes, eu acreditava que a única maneira de sensibilizar as pessoas e ter alguma chance de ser aceita seria tentando comover as pessoas contando minha história de pessoa que “nasceu no corpo errado”, e sofre por não ser vista pelas pessoas como uma mulher. Que sofre preconceitos, agressões cotidianas, e que tem mesmo as tarefas mais simples, como ir à padaria próxima, dificultadas ao máximo pelo medo. Com o contato com o Transfeminismo, aprendi que podia lutar para ser aceita, através de outra via: mostrar que, mesmo “incomum”, “esquisita” e “diferente”, eu continuo sim, sendo uma pessoa produtiva, capaz de trabalhar, se sustentar, interagir socialmente, pagar seus impostos, fazer circular a economia por ser consumidora (não paro de pensar nisso toda vez que entro num shopping e vejo os seguranças me rondando), e contribuir para a sociedade em geral.

E hoje só estou aqui, viva e seguindo meu caminho, prosseguindo na minha transição, porque obtive a força para não me matar, através do Transfeminismo, e suas idéias. A “ajuda” que a prática médica e convencional tem a oferecer, em relação às pessoas trans*, não teria me salvado. A face desumanizadora do processo teria me esmagado logo no começo. Eu teria ficado pior.

Eu entendo que cada pessoa trans* tem seu sofrimento distinto, e nem todo mundo pode encontrar tamanho conforto somente em idéias. Algumas pessoas trans* puderam encontrar conforto permanente, e não sentem qualquer necessidade de modificações corporais. Eu não. Preciso disso. Mas ao menos consigo me ver e me sentir mulher AGORA, enquanto não tenho isso, e isso me ajuda a continuar. Não posso falar por nenhuma outra pessoa trans*, muito menos pelos homens trans*, cuja realidade é BEM distinta da minha (por exemplo, eles não têm como se hormonizar por conta própria, ou isso é praticamente impossível. E caro), mas acho que assim como eu, alguns encontraram conforto na idéia de que são homens, mesmo que possam ter seios. Isso não significa que deixaram de sofrer por isso. Esse pequeno alívio não é permanente, e se suas necessidades ficarem sendo adiadas, eles vão se deprimir e possivelmente se matar (assim como eu), mas ao menos tem uma pequena, ínfima, fonte de força e motivação para continuar até que tenham o que precisam.

Então, é isso o que penso. Mesmo as pessoas com disforia mais acentuada, que não poderiam aceitar seus corpos de forma alguma, poderiam ter ALGUM conforto e alívio, por menor que seja, enquanto não obtém acesso aos procedimentos que precisam, por adotarem a postura body-positive do Transfeminismo: mesmo com seios, você é homem, e seu corpo é um lindo corpo masculino. Um dia, seus seios serão removidos, você terá pelos pelo corpo, mas você é um homem HOJE, e seu corpo, mesmo em transição, é lindo. Isso poderia dar a eles alguma motivação para continuar e se manter até o fim do processo. Nem todos conseguiriam se confortar com isso, mas acho que alguns já fizeram isso.

Eu devo muito ao Transfeminismo – um movimento, um conjunto de idéias, que me ajudou tanto. Ele pode não servir para todo mundo, mas isso não desmerece todo o movimento.


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Comentários

Uma resposta para “O que o Transfeminismo significa para mim”

  1. Avatar de Lipe
    Lipe

    eu sou jornalista e amo esta pagina muito legal bom informacao sobre o mundo trans