Confesso que essa pergunta sempre me perturba. Porque de alguma forma está implícita uma noção de que a questão transgeneridade é uma questão de interesse exclusivo de pessoas transgêneras, já que nos compete inclusive dizer o que cabe a pessoas cis, como abordar, como chamar, como tratar enfim, como lidar conosco. Temos que fazer o papel de pedagoga(o) da cisgeneridade o tempo todo.
A história da transfobia, do transfeminicídio é constituída de personagens que são desrespeitados quando vão a padaria, que apanham dentro e fora da escola, que são constrangidos na delegacia, que as portas do mercado de trabalho lhes foram fechadas, que são jogados pra fora de casa como se fosse um sapato velho que não lhe serve mais, e que tiveram suas vidas tolhidas no auge da sua juventude. Entretanto a história da transfobia e do transfeminicídio é constituída por outros personagens que experimentam desde sempre grandes privilégios frutos dessas violências, naturalizando-as como direitos.
O direito de defender “a honra e a moral da família” quando expulsam seus filhos transgêneros, o direito de não causar tumulto entre os alunos cis quando nego o direito aos alunos trans de usarem o banheiro de acordo com a sua identidade de gênero. O direito de não “chocar” seus clientes quando não contrato uma travesti pra trabalhar na sua empresa. O direito de fazer piadinhas “uós” com travestis e transexuais, alegando que “já ta ficando chato não poder mais rir da cara delas”. O direito de condená-los ao inferno, porque pecado abominável é sempre o do outro e nunca o seu. O direito de justificar a morte com 20 facadas da menina transgênera. O direito de patologizar as identidades que escapam do cárcere de gênero, porque tudo que é diferente de você não é normal. O direito de desrespeitar as identidades trans alegando que não sabe como “tratá-los” e vários outros privilégios naturalizados como direitos da cisgeneridade compulsória.
Então a desconstrução dessa teia de vilipêndios cabe a pessoas transgêneras e cisgêneras e os caminhos para a superação da transfobia e do transfeminicídio pelas pessoas cisgêneras têm de ser descobertos e trilhados POR ELAS. Acho que são as pessoas cisgêneras, experts nos privilégios da complementaridade dos gêneros referenciados na heterossexualidade, que têm de achar as vias para o desmantelamento desse castelo de bruxa.
Pra mim essa questão sempre soa como um espaço da cisgeneridade mimada e mal acostumada, que quer tudo de bandeja, de esperar sentado de braços cruzados, que quer resposta pronta pra tudo. Como se transformação social tivesse algum tipo de receita pronta ou acabada e não se tratasse de um trabalho árduo, regado de educação social política, boa vontade e sobretudo compromisso para reverter as desigualdades. Ou seja, as pessoas cisgêneras têm se empenhar, assim como nós, para descobrir as armadilhas da transfobia, estancar o transfeminicídio, testar possibilidades e encarar suas contradições. E não imputar mais um encargo às pessoas transgêneras que, de repente, além de sofrer na pele a transfobia praticada pelas pessoas cisgêneras, ainda tem que ter a obrigação de ter softwares emocionais, mentais intactos e aparecer com soluções mágicas para o dilema dos SEUS privilégios. Então o papel das pessoas cisgêneras é se entrincheirar contra a transfobia DO SEU LUGAR de privilégio, politizando suas questões e achando respostas efetivas para as violências que nós transgêneros já não estamos mais conseguindo suportar.
Imagem concedida pela autora.