Texto de Léo Araruna
Imbuídas em um organismo vivo chamado social, somos rendidas a regimes normativos que nos cospem suas leis. Chegar nessa terra povoada já é receber pulsões, impulsos e desejos de controle e molde do corpo. A partir de nossa carne infantil, somos organizadas a corresponder aos olhares dominantes: o que é ser um homem e uma mulher, e só. Vítimas do continuísmo podre, o embocetamento conduz à mulheridade, e os penianos que se façam de viris. Se houver deturpação, que a repulsa e o asco dos Outros repreendam tal infante. Nada além é permitido. O regime acalma os olhos, faz tudo ser lido e compreendido. O masculino para o feminino, a fêmea para o macho. Tudo certo. Tem-se a Verdade.
Contar a história da Heteronormatividade e da Cisgeneridade como regimes regrantes do mundo social pode requerer um maior período temporal e demais palavras para caber neste texto que prometo síntese. Por isso, busco, aqui, permissão para analisar determinada perspectiva desses regimes. Aquilo que eu e demais companheiras nos achamos repetindo em demasiados encontros: o abuso, o assédio, e a precarização de nossos corpos.
Os dois regimes ditados acima atuam em permanência e de forma mútua. A fim de se fazerem fortes e necessários, registram-se em nossos corpos, seja pela estética corporal, pela expressão gestual, pela performance, ou pelo invocativo das vontades e sugestões que o corpo expulsa. O gênero ─ material produzido nessas regras ─ se apresenta por tudo aquilo que nos adentra como socialização e por tudo aquilo que jorramos e que exteriorizamos ao entrar em contato com os devaneios e experiências do psíquico.
Dessa forma, vê-se que somos criaturas construídas, entalhadas e imitativas. Somos despossuídas, só chegamos com as tripas que nos comporta, e, assim, somos validadas e nos tornamos possíveis devido à interpretação e à leitura social que o próximo nos invoca a partir dessa generificação corporal realizada por esses regimes. Assim, há violência. Todas nós somos ajustadas, desde o instante em que chegamos ao território do social.
Contudo, a gana deste texto está em gritar outra Violação. Aquela que se mostra após a construção dos corpos, a que se apresenta na interação destes. Então, através da observância, da experimentação e do testemunho, faço uma aposta: encontro uma dualidade desigual e violenta na interação e transa de corpos em meio à sociedade. Vejo corporalidades capazes, proprietárias, consumidoras, e que comem; por outro lado, vejo bichos fracos que se destinam a objeto ou à objeção, que tem seus corpos raspados, tolhidos e divididos, os que são comida. É melhor eu repetir em outro tom, com uma gramática de gênero: vejo os abusadores ─ os Homens heterossexualizados e cisgenerizados ─ e todo o resto que sobra.
A rendição desse resto de povo às vontades desses homens se apresenta em contextos alarmantes. É na epidêmica violência doméstica que inúmeras mulheres vivenciam, é na economia da prostituição destinada às travestis nos cantos de rua, é no estupro corretivo que vitimam lésbicas e homens trans.
Os regimes de controle apontados, ao fabricarem nossa matéria corpórea, não apresentam somente a necessidade de dois corpos distintos, um feminino e outro masculino, que devem se complementar e se pertencer. Eles, também, rearranjam o lugar e a territorialização de cada corpo produzido no mundo, até mesmo daqueles que desafiam suas estruturas de regulação e que desobedecem a suas legislações compulsórias: os corpos trans os quais possuem uma textura corporal imprópria para sua genitália ou os corpos lésbicos, gays e bissexuais os quais possuem um afeto indevido de ser exposto e compartilhado. Sendo assim, o espaço em que essas pessoas devem ocupar dentro do organismo social é delimitado. Há dificuldade de se impor, ser um ente possível e capaz de alcançar, quando não se é esse Homem, ou quando não se respeita esses regimes.
Surgimos ao sermos reguladas. E nossa disposição no mundo, devido à nossa composição de gênero, é desigual. Surgimos em meio à desigualdade. Surgimos para sermos desiguais. E, em meio a essa desproporção, têm-se os abusos, as violações, a angústia, o medo.
A princípio, o impossível nos chega como resposta à tentativa de falência desse mundo. Como ruir com essa organização tardia que nos destrói, que nos caça, que nos alimenta? Como deturpar as desigualdades dos regimes da Heteronormatividade e da Cisgeneridade, para que dominantes se desfaçam e subordinados se ergam? Que espécie de afetividade deveremos atiçar para fundar a revolução corporal, a qual rompa de vez com essa repetição cansativa, violenta e abusiva?
Estratégias e planos aos montes são traçados, a fim de ruir ou, ao menos, desmontar, os pesadelos dessas relações e desses marcos políticos que nos agridem. Mas, hoje, aqui, invoco uma pequenez. Lanço uma disputa mínima nesse jogo que descrevo. Vou dialogar com o mutável, com o que me passa, me atravessa; com o que nos transpõe. Vou pensar o impossível com os outros corpos que me aproximam. Vou fazer uma política com aquele resíduo de gente que me sobrou. Pensarei experiências de abertura e de libertação com aqueles restantes de pessoas que são a negativa daqueles Homens que nos afligem. Vou me fortalecer pela desigualdade que nos foi dada. É mergulhando naquele impossível que me apresenta, muitas vezes, como única resposta que descubro mulheres e homens que são feitos à subordinação como eu. Deixar-me-ei levar por suas descrições sobre mim. Farei dessa pele que me cobre uma construção Nossa, plural, coletiva. Deixarei que me componham, que me descrevam, que entrem em mim. Poderemos ser construídas pelas diferenças que já nos formam. Serei atualizada pelo que juntas produziremos. Não serei minha. Serei bicho solto, despossuída pelas companheiras que caminham junto. O pequeno que, aqui, peço é que nos tornemos coletivo com aqueles corpos em excesso. Um aglomerado de povo que destoa do organismo total chamado social. Um amontoado que não seja nação ─ um geral, composto, sem especificidade ─, mas uma grandeza que seja dúvida, ideia e estratégia de realização política formada por corpos afastados. Deixe-me seguir, enquanto posso e tenho calmaria, ao lado das invenções de fuga e de desordem de mulheres e homens que sangram comigo.
Léo Araruna, 21, é estudante de Direito, travesti, e militante da Coletiva LGBT Corpolítica.