Os ministros do STF e as travestis

Por Beatriz Pagliarini Bagagli.
Vocês sabiam que os ministros e ministras do STF tiveram problemas com a identidade travesti no momento do julgamento dos processos (RE 670.422/RS e ADI 4275) que, se aprovados, desobrigam a realização de cirurgias para a retificação de nomes de pessoas trans? Alegaram tratar-se de “um tema que eles não estavam preparados”. Ué, se travestis e transexuais configuram-se historicamente como grupos sociais que demandam reconhecimento identitário em nosso país era de se esperar que os ministros, ao se “prepararem” sobre o “assunto transexual”, estivessem “preparados” para falar sobre a travestilidade como se fosse uma implicação lógica: isto porque neste caso as demandas de travestis são a rigor idênticas as demandas de transexuais.
 
Caberia ainda ressaltar que os processos, ao versarem sobre a não obrigação de realização de cirurgias, deveriam justamente apontar para questões que tipicamente são associadas à travestilidade, na medida em que tanto circula no senso comum que travestis não buscariam cirurgias de redesignação sexual como forma de se contrapor às pessoas transexuais, que a princípio buscariam. É verdade que nem todas as pessoas transexuais realizam tais cirurgias, isto porque nem sempre se trata de uma questão de querer, e sim de poder (sejam por questões financeiras, sejam por questões, físicas, de saúde, etc), de forma com que a resolução também incidisse sobre transexuais, mas já deveríamos notar que os conteúdos dos processos em questão dizem diretamente e intimamente a respeito do que usualmente se associa à travestilidade.
 
Mas nada é tão simples como deveria ser. Isto porque nós temos que atravessar uma densa camada obscura de estigmas, discriminações, discussões sobre racialidades e classe, de vontades de saber do campo médico-jurídico, de hierarquias de poder que regem a dicotomia travesti-transexual em nosso país. Há toda uma discussão não óbvia para compreender essa ausência de saber dos ministros, ou essa recusa dissimulada de não saber ou não querer saber acerca da existência de travestis em nosso país como sujeitos de direito.
 
Pois é, isso mesmo que você leu e explico melhor. Estes processos que chegaram nada menos que na última instância de deliberação do nosso país já deveriam ter sido votados há muitos, muitos meses atrás. Ou seja, estão postergando várias e várias vezes, sucessivamente. Uma das razões a que isso se deve é a ignorância dos ministros acerca da identidade travesti. Ou melhor, não se trata tão somente de ignorância como mera falta de um saber que seria saciada por um saber, é um saber em si mesmo, um a mais que faz falta, que suplementa, cria, uma falta de saber, uma impressão de não-saber.
Esta falta-de-saber que é em si uma forma de saber que está rodeada imaginariamente de receios, medo, desconfiança e estigmas. Não é uma falta de saber dos ministros sobre o que significa uma travesti; achar que os ministros não saberiam o que é uma travesti (ou o que significa ser travesti) chega a ser ingênuo, pois seria o mesmo que acreditar que bastaria a eles abrir o dicionário e encontrar a palavra travesti. Como se eles nunca tivessem ouvido falar, como se eles só pudessem saber o que é travesti a partir de então, como se não houvesse um imaginário prévio desses ministros sobre o que é ser travesti. Em minha opinião, se trata de uma “falta-de-saber” que literalmente funda um saber bastante específico sobre a travesti como uma identidade excluída de toda forma de representação inteligível.
 
Travesti é uma palavra que assusta, que amedronta, que aponta para uma realidade ainda mais desconhecida e incompreensível que a transexual. É por isso que precisaria continuar escondida, incompreendida de uma forma bem específica. Isto representou um entrave ainda maior para o desenrolar das ações. Isto também me parece inevitável. É inevitável que os ministros atravessem esse fantasma, esse imaginário sobre o que é uma travesti. E digo os ministros e além: a sociedade como tudo. Os ministros do STF não podem foracluir a travesti, não em nosso país, não em nosso contexto. Não mais. São nossas vidas. Estamos há anos clamando pela possibilidade de existir, não é possível recusar o atravessamento da imagem da travesti. É inevitável que os ministros se defrontem com a identidade travesti ao julgarem as ações. É inevitável que a sociedade comece a se defrontar com as travestis de uma outra forma.
E é por isso também que falar de travesti em nosso país é falar sobre pessoas trans e também sobre transexuais. Por mais que se tente buscar diferenças essenciais entre essas duas identidades, continuaremos, ao falar de uma, tocar inevitavelmente na outra. E quando as travestis avançam em suas lutas por direito, eu, enquanto mulher trans branca, sei que se trata de um sinal importantíssimo sobre como os direitos de pessoas trans no geral está avançando; isto me toca necessariamente, por mais que eu tenha acesso a laudo atestando minha transexualidade “verdadeira” (isto porque isso eu tive acesso facilitado a este laudo por n privilégios, tais como o de passabilidade, aceitação familiar, classe, raça, escolaridade, etc). Isto porque eu sei que a verdade atestada num laudo de transexualidade é imaginária e frágil, precária, quase incapaz de dizer qualquer coisa sobre mim.
 
Isto porque é a identidade travesti que suporta a transgressão, ou melhor, uma transgressão no interior da própria transgressão, ela aponta para a indeterminação das próprias identidades trans. E isso diz respeito às pessoas transexuais também, e também, mesmo que de outra forma, às próprias pessoas cis. Isso gera desconforto, sobretudo nas pessoas cis, sobretudo nas pessoas cis que são juízes e julgam se pessoas trans tem direito a retificarem seus próprios nomes; nas pessoas cis que são psicólogos e são praticamente convocados a “laudarem” pessoas trans; nas pessoas cis que são psiquiatras e detêm o poder de determinar uma verdade diagnóstica. Isto é, num desejo de saber o que nós, pessoas trans, somos de “verdade”, o que redunda em querer determinar quem é “trans de verdade”. Acontece que ser travesti não é ser “trans de mentira”, ser travesti contém a sua própria verdade que a cisgeneridade como sistema de exclusão se recusa a reconhecer.
 
Este desconforto que a cisgeneridade (como sistema de exclusão, que determina hierarquias e alimenta injustiças sociais e desigualdades) é intimamente relacionado à uma impossibilidade constitutiva, ao não poder saber absolutamente tudo sobre as nossas identidades, esse desconforto gerado pelo fato de pessoas cis não conseguirem dissecar as identidades trans nos mínimos detalhes por suas lentes microscópicas. Um desconforto em não saber tudo está no cerne da repulsa e ignorância deliberada em relação a travestilidade.
 
Já chegou da hora do cis.tema entender que é isso mesmo: vocês não podem saber tudo sobre nossas identidades trans. Porque não há “o que” saber, simplesmente. E está tudo bem. Não haverá nenhum apocalipse, hecatombe, ou qualquer tipo de crise pelo fato de vocês entenderem isso como uma impossibilidade constitutiva, que sempre esteve aí. Vocês nunca descobriram todo o “continente transexual” pelo fato de vocês inventarem laudos, diagnósticos, CIDs. Vocês pessoas cis nunca puderam recobrir tudo o que nós somos por meio desses artifícios. Não é necessário que vocês saibam tudo, o todo, de nossas identidades para que vocês comecem a nos reconhecer, a nos respeitar.
 
A identidade transexual causa desconforto, mas é a identidade travesti que o desconforto é ainda potencializado, pois a travestilidade não pode ser facilmente apreendida por um saber médico, tampouco jurídico. Isto porque não se fala travesti na Europa ou nos EUA. A travesti é uma identidade nossa, latina-americana, brasileira, apenas nossa, tipicamente nossa, e é por isso que ela é recusada, renegada, ignorada pelos nossos digníssimos juízes e ministros. A travesti demarca nossa brasilidade em termos de abjeção. A travesti é tão nossa que por isso mesmo não é suportada.
 
Se o saber médico escapa, falha, o jurídico o segue. Acontece que o jurídico não pode continuar se eximindo do fato de existirem travestis em nosso país. Do fato que travestis demandarem o reconhecimento jurídico de suas identidades, tal como as pessoas transexuais o demandam.
 
É mais fácil para o entendimento desses ministros a importância de uma decisão que desobrigue a realizações de cirurgias para pessoas trans terem acesso ao direito jurídico quando estamos no âmbito de inteligibilidade do discurso médico que traduz a transexualidade em termos médicos. Quando estamos falando de travestilidade, não temos a mesma prerrogativa, infelizmente. Isto porque a travestilidade é a palavra que ocupa na designação daquilo que foge à lógica da cisgeneridade e ocupa o lugar do incompreensível, da ausência de sentido, do abjeto. É quando os termos médicos-jurídicos não são capazes de falar o que somos, o que desejamos.
 
E é nestes momentos em que falamos de travestilidade, justamente, é que podemos vislumbrar o ponto onde tudo é revelador, crucial, onde há verdade, um ponto que demonstra o quão profundamente, eticamente, o quão verdadeiramente estão dispostos a nos ouvir enquanto pessoas trans, em nossas demandas de reconhecimento de vida. Eu me pergunto quando a sociedade irá reconhecer as travestis, na medida em que me pergunto quando esses ministros irão reconhecer as travestis como sujeitos de direito. O reconhecimento destes ministros da identidade travesti é também o reconhecimento que posso viver; se trata de um passo absolutamente fundamental para que possamos dizer que pessoas trans são entendidas como cidadãs, como sujeitos de direito, isto porque o acesso ao direito jurídico sobre o nome próprio é condição de possibilidade para que pessoas trans sejam reconhecidas como pessoas, sejam elas transexuais ou travestis.

Publicado

em

por