Texto de Lêx Labão.
eu tava a fim de discutir um pouco melhor a questão da “passabilidade” que a gente tanto fala na internet e às vezes me parece que de uma forma meio inconsequente
você normalmente ouve o tal conceito de “passabilidade” sendo usado pra deslegitimar alguns grupos de pessoas
a saber, as ocasiões em que eu mais ouço essa palavra são:
-pra dizer que bifobia não existe porque pessoas bissexuais têm “passabilidade” hétero ou homo
-pra dizer que homens trans com “passabilidade” de homem (ou seja, hormonizados, barbados, que são vistos como homens na rua) ou mulheres trans com “passabilidade” de homem (ou seja, não-hormonizadas, com barba, ombros largos, cabelo curto e etc.) não podem dar pitaco no feminismo porque a sociedade os vê como homens e portanto não sofrem machismo/misoginia
e já cheguei a ouvir até que não precisa discutir opressão de homens trans porque eles têm “passabilidade” de lésbica quando andam na rua
(ou seja, pra quem não sacou, “passabilidade” significa que você é visto como dada coisa, mesmo não sendo) então vamos lá
eu acho muito esquisito você discutir opressão só do ponto de vista do que acontece quando você tá andando na rua
reduzir o sofrimento de pessoas LGBT simplesmente a estar andando na rua e levar uma lampadada na cara
não que isso não seja horrível e tal
mas meu, opressão é muito mais do que isso. e acho meio chocante vocês falarem tanto em “opressão estrutural” e daí reduzir a discussão a isso, quando, se você pesquisa “opressão estrutural” no google, a coisa mais importante que vão te dizer é que uma opressão estrutural é caracterizada pelas suas INSTITUIÇÕES. ou seja, escola, polícia, leis, tribunais de justiça, família, etc. etc.
e nessas instituições, o tratamento dado a pessoas bissexuais ou homossexuais, cis ou trans, etc., é radicalmente diferente
como é que a gente vai poder dizer que não se precisa discutir a questão dos homens trans porque dá na mesma que ser lésbica, quando mulheres lésbicas não passam por uma caralhada de problemas que afetam MUITO o nosso dia a dia, como:
-não ter direito a usar o próprio nome, e portanto estar sujeito a uma série de humilhações e até violências porque TODO MUNDO sabe que você é uma pessoa trans, e podem usar isso pra ser violentos com você a qualquer momento;
-não ter direito ao tratamento hormonal necessário pra conseguir assumir a identidade que quer, e por isso ter uma série de oportunidades de emprego negadas, por exemplo, porque ninguém quer contratar “essa pessoa esquisita” que tem cara de mulher e quer ser tratada como homem e vai assustar os clientes;
-apesar de isso também acontecer com mulheres lésbicas, elas são MUITO menos expulsas de casa do que qualquer pessoa trans ou mesmo bissexual;
-e também, devido a essas violências e humilhações todas, ter menos acesso a emprego, saúde (85% dos homens trans não procuram tratamento médico por medo de transfobia), educação (cerca de 90% das pessoas trans não completam o ensino básico), etc
-e, caso queiram mudar o nome dos documentos, ter que conseguir um laudo ATESTANDO que elas são realmente trans pra conseguir fazer essa mudança, passar por um julgamento que vai avaliar se elas podem fazer isso ou não, e ainda ter a chance de ter isso negado pra ter que sofrer todas as violências citadas acima novamente;
-e ainda, quando conseguirem, perder o direito ao acesso a proteções legais importantes, como a lei maria da penha, por exemplo, que diz respeito só a mulheres. o fato de homens trans não poderem ter acesso a essa lei não faz NENHUM SENTIDO, dado que nós somos uma das parcelas que mais é estuprada e mais entra em relacionamentos abusivos na sociedade.
-ou seja, nós basicamente temos que escolher entre sofrer menos violência no dia a dia ou não ter nenhum amparo pra caso a gente sofra violência
como isso dialoga de qualquer forma com a violência sofrida por mulheres lésbicas?
da mesma forma, como dizer que basta um homem trans ter passabilidade pra não sofrer mais violência/ter privilégios, se a cada vez que ele quiser apresentar um documento ele estiver se expondo a ataques e humilhações, se ele continua não tendo oportunidades de emprego, se ele ainda corre sérios riscos de entrar em um relacionamento abusivo ou sofrer estupro corretivo pra ~aprender a ser homem~ ou ~gostar de ser mulher~ e ainda por cima corre o risco de NÃO TER AMPARO LEGAL NENHUM CASO ISSO OCORRA? como dizer que uma mulher trans não-hormonizada tem privilégios de homem se ela não tem o direito ao respeito básico, e ambos teriam que se esconder, fingindo ser homem cis, pra não sofrer violência? se você tem que fingir não ser algo pra não sofrer violência, é porque ser esse algo acarreta violência, ué. como isso é privilégio? e eu nem to entrando na parte de como o cisplay (tanto de mulheres trans fingindo ser homens quanto de homens trans fingindo ser homens cis) tem efeitos super pesados na mente dessas pessoas.
da mesma forma, como falar que pessoas bissexuais em relacionamentos héteros têm privilégios, se elas sofrem QUATRO VEZES mais estupro corretivo do que mulheres lésbicas e hétero, se elas correm sério risco de serem abusadas por esses parceiros justamente por serem bissexuais, se existem até casos de pessoas bissexuais que foram AMEAÇADAS por outras pessoas com quem se relacionavam, que diziam que se a pessoa não fizesse como ela mandava iam espalhar pra todo mundo que ela era bissexual? se existem casos de pessoas bissexuais que estavam sendo ameaçadas de morte por causa de sua sexualidade e pediram asilo em outros países, e tiveram ele negado por serem bissexuais e não homossexuais? se as pessoas bissexuais são as que mais são expulsas de casa, menos conseguem emprego e portanto as mais pobres de toda a comunidade LGB? se não existe nenhuma política de saúde voltada para pessoas bissexuais, muito embora seja óbvio que precisamos de uma?
se qualquer pessoa trans ou bissexual que precise de amparo psicológico, além de ter 30x mais dificuldade pra conseguir isso porque tratamento psicológico gratuito é difícil de se arranjar e as pessoas bis e trans sofrem MUITO com dificuldade de acesso a educação e emprego, também correm o risco de não ser ajudadas e sim patologizadas porque tanto bissexualidade QUANTO transsexualidade ainda não consideradas DOENÇAS pelos órgãos de saúde internacionais? (bissexualidade é considerada sintoma de transtorno borderline e transsexualidade tá tipificada como ‘transtorno de disforia de gênero’, pode pesquisar)
enfim, vocês percebem como é absurdo resumir opressão ao que acontece quando a gente tá andando na rua, quando na verdade ela está presente em todo o nosso dia a dia, afetando a nossa capacidade de SOBREVIVER, de ter onde morar, conseguir emprego, estudo?
e me preocupa muito que essa militância que eu vejo por aí não se preocupe em discutir a opressão institucional, não só porque isso tá sendo usado pra oprimir e perseguir minorias, mas também porque isso não é NADA PRODUTIVO enquanto militância.
se a gente se reduz a discutir a opressão que você sofre quando anda na rua ou ouve xingamentos, por exemplo, então a gente vai passar o resto das nossas vidas lutando a cada vez que uma pessoa LGBT, negra ou mulher sofrer violência, pra conseguir “justiça” pra essa pessoa, ou ir reclamar de toda piada LGBTfóbica que for feita, por exemplo. e claro que lutar por isso é importante, vamos nos posicionar SIM pela liberdade de rafael braga, e explicar sim porque piadas ofensivas o são porque isso é importante, mas fazer APENAS isso é dar murro em ponta de faca, e a gente vai ficar fazendo isso e se estressando pra tentar ajudar todo mundo que sofre com isso individualmente, e daí a gente vai morrer e tudo vai seguir como normalmente. nada vai mudar.
inclusive acho bem sintomático que, fora “problematizar” no facebook, as pessoas se foquem em criminalização da LGBTfobia como forma de luta pelas minorias.
só pra deixar claro, eu não tenho posição definida quanto à criminalização da LGBTfobia, mas acho importante observar algumas coisas:
-o sistema judiciário ainda discrimina enormemente mulheres e pessoas LGBT. sabemos que muitas vezes a polícia chega a se recusar a fazer bo para mulheres estupradas ou pessoas LGBT agredidas. como é que a criminalização vai nos ajudar se a gente não consegue nem abrir um processo?
-a maior parte das pessoas LGBT e mulheres agredidas não têm muito dinheiro (ver acima: discriminação no mercado de trabalho, expulsão de casa) pra contratar um advogado e conseguir realmente ganhar esse processo; e
-sabemos que o nosso sistema judiciário é racista e elitista e vai se posicionar sempre a favor das pessoas brancas e ricas em um processo
podemos realmente nos limitar à criminalização da LGBTfobia pra discutir os problemas LGBTs?
a gente tem que falar da estrutura como um todo
a gente tem que discutir, por exemplo, a implantação de nome social em escolas, universidades e instituições públicas e privadas; ter o kit anti-LGBTfobia nas escolas; ter políticas de saúde pública específicas voltadas para as pessoas LGBT (sobretudo B e T, devido aos problemas causados pela hormonização – no caos das T – e da questão de proteção contra DSTs, no caso das B), capacitação dos profissionais para fazerem atendimento apropriado de pessoas LGBT, criação de abrigos específicos para a população LGBT moradora de rua (que os trate direito e não como aberrações ou com violência. e que tenha uma política bem específica pra pessoas bissexuais, pra ninguém sair por aí dizendo que pessoas bissexuais não podem entrar porque ~não são LGBT de verdade~), políticas de permanência adequadas para essas pessoas na universidade, temos que discutir a questão da prostituição (onde se encontram 90% das travestis), discutir desmilitarização da polícia (que ataca sobretudo pessoas negras e pobres), e isso só pra começar. mas eu não vou me alongar muito porque eu já falei de tanto tópico nesse texto que to até meio zonzo
então pelo amor de deus, vamos parar de nos limitar a discutir se fulano ou ciclano é passável ou não como o que quer que seja, ou se fulano ou ciclano é “problemático”, e passar a ter um olhar mais completo, mais bem feito sobre as coisas, pra ver a opressão em sua totalidade e não apenas em casos muito específicos. se não, a gente não chega a lugar nenhum
Imagem: A coisa toda