O texto a seguir de Laura Leanora nos dá subsídios para compreender a questão das minorias enquanto uma questão essencialmente política, e não meramente numérica. Compreender a existência das normas fazendo referência a uma evidência da constituição dos grupos hegemônicos como uma maioria numérica implica em naturalizar o funcionamento destas normas – e aqui, a autora discute a cisnorma especificamente. O fato de existirem “mais” pessoas cis em termos numéricos não é um dado a priori, evidente por si mesmo e auto-explicativo que remeteria a uma lógica que pressuporia que “se existe mais pessoas cis é porque é natural de se existir mais pessoas cis” de modo a concluir que a cisnormatividade seria uma consequência espontânea da existência desta “maioria” estatística. Ao contrário, o fato de existir uma hegemonia cisgênera (que não se trata meramente de uma maioria numérica) é resultado de uma estrutura em si mesma que produz a cisgeneridade como o destino natural de toda pessoa e esconde, por isso, o funcionamento da própria cisnorma enquanto norma. A fluidez e a instabilidade de gênero (e a existência de pessoas que estão a margem desse sistema) estão na verdade implicadas na própria constituição desta norma; então não existe uma realidade cisgênera pura e inocente de um lado e as “exceções” raras a uma regra pretensamente universal, que transgrediriam a norma posteriori. Existe desde sempre uma regra que exige a exclusão dos tidos abjetos das formas com que eles são representados; ou seja, é uma presença pela ausência, que tem o seu peso material constitutivo no funcionamento – e também questionamento, subversão, transformação – destas normas.
Texto de Laura Leanora Dias.
No meu post recente falando sobre inclusão de pessoas trans no mainstream social, o comentário do Kimon é tão representativo da noção de “inclusão” que predomina na nossa sociedade que vale à pena fazer um novo post pra responder. No post, eu afirmo que pessoas trans são vistas como exceções e raridades porque a norma de gênero dominante não prevê e não admite nossa existência, e que não somos exceções ou casos raros, mas que essa ideia de raridade e exceção é usada pra reafirmar nossa exclusão. O comentário do Kimon foi:
“Estatisticamente você, sim é um caso raro. A norma baseia-se nas maiorias. Errado seria desrespeitar as minorias. Mas o facto das minorias não encaixarem nos sistemas baseados em maiorias não significa, em si, qualquer desrespeito. Uma sociedade tem que se basear em maiorias, respeitando minorias. Se não for isso, terá que existir uma anarquia madura e iluminada que, infelizmente, não é praticável pela maioria. Há de abraçar o nicho, não exigir que ele não existe.”
Tá, começa que falar de pessoas trans “estaticamente” é complicado, porque o não reconhecimento é tamanho que simplesmente não há estatísticas nacionais ou globais robustas sobre pessoas trans. Nós não somos incluídas em censos, os governos não demonstram interesse algum em quantificar nossa existência e, justamente, qualquer assistência a nós dispensada pelas instituições é de caráter expressamente excepcional, como um favor – não como um reconhecimento de direitos. Não tem como falar em quantos somos, porque esse é um dado desconhecido.
Ainda que soubéssemos, a questão de quantidade é irrelevante quando consideramos que essa maioria de que fala Kimon não é meramente numérica, mas ideológica. A norma não considera estatística e proporção. Dizer isso é uma ingenuidade que só alguém que não passa por machismo, transfobia ou racismo consegue dizer com tranquilidade. A norma é imposta por quem detém o poder de fazer isso. Quando a gente fala em minorias, o sentido dessa minoridade é ideológico – minorias são minoritárias por serem silenciadas, não por serem em menor número. A cisnorma não é simplesmente a norma das pessoas cis, mas dos homens cis. A cisnorma que propositalmente não reconhece a validade das existências trans é, antes de tudo, patriarcal. O homem cis branco é o modelo, o homem cis branco é o sujeito de direito, o homem cis branco é a norma, o homem cis branco é o ser humano. É perfeitamente possível um cenário onde a maioria das pessoas seja trans e continue havendo transfobia e exclusão, a exemplo da constante predominância numérica de pessoas designadas mulher diante do machismo, ou a imensa maioria de pessoas pobres diante do domínio dos ricos. Os brancos caucasianos jamais deixaram de ser numericamente minoritários e, no entanto, predominam ideologicamente ao redor do globo. Hegemonias se mantêm por dominância ideológica, não por predominância numérica – isso é elementar. Falar de quantidades de pessoas trans diante da norma não pode desconsiderar que é essa norma que produz pessoas cis, ao mesmo tempo em que é a mesma a produzir a ideia de transgeneridade e trabalhar ativamente para que pessoas trans não existam.
Aí, primeiro ele diz que seria errado desrespeitar as minorias, mas o fato delas não se encaixarem nos sistemas baseados nessas maiorias não significa desrespeito em si. Isso é incoerente. Seguindo sua lógica, para que haja equidade, os sistemas devem ser pensados e praticados considerando-se ~ todos ~ não apenas a maioria numérica (‘uma sociedade tem que se basear em maiorias respeitando minorias’). Se há desencaixe de um certo grupo, isso aponta para exclusão e não reconhecimento. O próprio fato, o fato em si de não haver encaixe indica clara falta de respeito – desrespeito, puro e simples.
Kimon fala como se fosse responsabilidade das pessoas trans o fato delas não se encaixarem numa cisnorma que produz suas identidades mas não admite suas existências. Essa incoerência é típica de alguém que manipula as ideias com a intenção principal não de fazer sentido, mas de impor ideologias, de colonizar. A lógica se curva à necessidade de que se conservem os lugares de poder.
A transgenereidade é o efeito colateral de uma estrita classificação cisnormativa, genitalista dos corpos. A peremptória exclusão de pessoas trans da sociedade não tem NADA a ver com nós sermos em menor quantidade, mas com a existência de uma norma sócio-cultural que categoriza os corpos e cria uma ideia de gênero como inerente a esses corpos, não admitindo qualquer trânsito ou mutabilidade, para que o domínio do masculino sobre o feminino se conserve com caráter de natural, de pré-cultural. A pessoa trans é excluída porque nossa existência não é desejável. A exclusão se opera pra que a gente morra mesmo. Esse caráter de raridade exótica das pessoas trans é conveniente para que se justifique a negligência dos nossos direitos e a desvalorização das nossas vidas.
É justamente por isso que eu defendo que a gente deva combater essa ideia da pessoa trans como uma raridade, uma curiosidade exótica. Isso existe pra conservar nosso lugar de aberração. Nossas generidades são excepcionais senão diante de uma norma estabelecida que considera tudo o que foge do arroz-com-feijão homem-masculino-com-pau mulher-feminina-com-buceta como algo de outro mundo. Mas nós não somos ETs, nós somos pessoas que, rejeitando esses modelos pré-fabricados em escala industrial de corpo e subjetividade, esses destinos prontos, se percebem no direito de serem donas da sua existência – plenamente humanas, pra dizer simplesmente. Só é interessante que não tenhamos nossa existência reconhecida a quem interessa um mundo povoado de seres humanos semi-humanizados.
Imagem: Pinterest.
Comentários
Uma resposta para “Pessoas trans não são raridades”
Adorei o texto!
Bem lúcido, objetivo e de fácil compreensão.
Cada dia me encanto mais e mais por cada texto publicado no blog.
Parabéns!