Poder Psiquiátrico e Transgeneridade: em torno da verdade diagnóstica

Texto apresentado na mesa “Moralidades (trans)feministas, família e assistencialismo” no IV Seminário Enlaçando Sexualidades em Salvador – BA.

foucault

Minha fala tenta reunir alguns pensamentos dispersos e iniciais acerca da questão dos processos de subjetivação que estou tentando traçar a partir de algumas leituras de Michel Foucault no que se refere à questão transgênera e psiquiátrica. Isto porque o autor em diversas partes de sua obra se questionou acerca da constituição da subjetividade a partir da própria existência de discursos que pretendem dizer as verdades do sujeito.

Procuro então pensar sobre as práticas que o sujeito tem que estabelecer em relação a ele mesmo no reconhecimento de seu próprio gênero tendo em vista o funcionamento de práticas psiquiátricas que estabelecem o tão famigerado diagnóstico de transexualidade. Qual é a dinâmica de poder que se estabelece entre aquele sujeito transgênero que almeja o laudo por intermédio de um psiquiatra? A verdade do diagnóstico é estabelecida através de quais relações entre estes dois sujeitos, como e onde a verdade diagnóstica emerge? De que tipo é esta verdade, quais saberes e práticas médicas e psicológicas são acionadas na constituição desta verdade sobre o gênero e suas patologias?

Trata-se de observar através de quais jogos de verdade o sujeito se reconheceu enquanto portador de uma doença de gênero dentro deste dispositivo médico e quais as possíveis linhas de fuga a este imperativo da verdade sobre o gênero. Compreender como se dá a relação entre esta prática de reconhecimento de si tendo em vista o funcionamento de um poder psiquiátrico que estipula verdades sobre o diagnóstico de disforias de gênero.

Foucault (2006) concebe duas formas distintas de verdade: a verdade enquanto evidência ou acontecimento. A verdade enquanto evidência é aquela que “está em todo lugar e em todo tempo”, é vinculada a certa posição filosófico-científica que a coloca a aparição da verdade condicionada a uma tecnologia de construção da constatação. A verdade-evidência se põe passível de ser descoberta pressupondo a sua existência prévia e independente ao sujeito que viria conhecê-la; por outro lado, a verdade como acontecimento se dá como um relâmpago ou aparição, ela aponta para a questão da dispersão, da localidade, da contingência própria à verdade. Nesta concepção da verdade como acontecimento, a relação da verdade com o sujeito de conhecimento não é a mesma como ocorre com a verdade-evidência: há implicações distintas do sujeito com a verdade. Na verdade-acontecimento o sujeito não é prévio à descoberta da verdade, tampouco a verdade é prévia ao sujeito: o sujeito de conhecimento se transforma na medida em que conhece a verdade.

Se consideramos que a produção do laudo põe em jogo a busca da verdade de si mesmo, ou seja, trata-se de responder ao imperativo “qual é a sua verdadeira identidade? Qual é a sua verdadeira identidade de gênero? Qual é o seu diagnóstico preciso, verdadeiro?” a distinção entre verdade como evidência ou acontecimento é de suma importância para compreender o modo de funcionamento das práticas psiquiátricas e como o poder é exercido nestes espaços das clínicas.

Vamos nos perguntar: a verdade do gênero do indivíduo portador de uma disforia é da ordem da evidência ou do acontecimento?

Questões que nos colocam igualmente outras questões: o próprio gênero enquanto objeto a ser conhecido se dá na ordem da apreensão enquanto evidência ou acontecimento? Conhecer seu próprio gênero implica em transformar-se e romper com certa evidência subjetiva anterior ou voltar-se para e na fixidez identitária prévia de si?

Poderíamos ver o funcionamento tanto da verdade evidência quanto da verdade acontecimento operando nos discursos médicos sobre a transexualidade. Para Foucault, aliás, não se trata de opor a verdade-acontecimento e a verdade-evidência como sistemas completamente distintos de verdade. Tampouco a psiquiatria pôde se constituir como uma disciplina capaz de construir um saber que diria a verdade da doença mental enquanto mera constatação científica.

Ao contrário, a verdade-evidência, nas palavras do autor, recobriu, colonizou e parasitou a verdade-acontecimento. Com isso se quer dizer que a verdade-evidência, antes de dizer respeito à tão sonhada neutralidade ou objetividade científica, é igualmente produzida através de rituais específicos de poder, se assemelhando neste aspecto com a verdade-acontecimento. A verdade-evidência não seria produzida independentemente do poder, se trata, ao invés, de um certo funcionamento da modalidade de produção de conhecimento em que o poder se mostra como elidido ou dissimulado.

Diria então que há a prevalência no dispositivo da transexualidade, por mais que a psiquiatria não consiga expulsar para fora de seu campo científico a verdade enquanto acontecimento, da verdade do gênero como evidência. Primazia da fixidez em detrimento do descontínuo. Relações de poder entre estes dois sistemas de produção de verdades sobre as identidades de gênero, na tensão entre a constatação e o acontecimento. A psiquiatria não conseguiu de fato constatar a verdade da transexualidade inscrita no biológico; se trata, antes de tudo, de uma forma de funcionamento do poder psiquiátrico de dissimular o exercício de seu próprio poder neste domínio especifico que se refere aos transtornos de identidade de gênero.

Arrisco então dizer que a própria ideia de um laudo que ateste a patologia do gênero é profundamente estranha e incompatível à verdade enquanto acontecimento. Um laudo faz justamente isto: atesta uma verdade enquanto evidência científica, fazendo dizer a verdade do sujeito sem mesmo a necessidade do sujeito se implicar na produção deste conhecimento; isto porque a verdade construída pelo laudo é tautológica, ela cria e justifica a si mesma, a verdade do gênero se constitui exterior aos sujeitos, tanto às pessoas transgêneras que demandam terem seus gêneros discursivizados pelo e no diagnóstico quanto ao próprio psiquiatra que escreve o laudo, pois a verdade está no próprio diagnóstico.

Neste regime de verdade, o sujeito trans deve se manter o mais transparente possível entre a sua maniestação verdade – inscrita na biologia – e sua decifração pelo psiquiatra a fim de se realizar um diagnóstico preciso. A posição do sujeito enquanto afirmada tenta ser anulada ao máximo neste processo, visto que o sujeito deve falar outra voz que a sua própria: uma voz capaz de fazer falar a própria biologia por si mesma – a evidência científica tem que se mostrar enquanto tal – de forma mais transparente possível para o psiquiatra. Qualquer forma de tomada de posição enquanto sujeito, qualquer coisa que faça remeter ao sujeito será tido então pelo psiquiatra como um empecilho ao seu exercício de diagnóstico. Gênero é presumidamente inscrito na biologia, e para obter a verdade do gênero, é preciso estabelecer uma prática de interrogatório em que a biologia possa falar a disforia do corpo transexual.

A própria subjetividade é transformada em falsidade, um terrível véu que impede o acesso à verdade nesta discursividade que patologiza o gênero. Nestas relações, o psiquiatra poderá, em nome da verdade do gênero, excluir o sujeito do diagnóstico, imputando a curiosa denominação de “falso transexual”. Isto porque se o sujeito falar sobre seu gênero de outra forma, fugindo da racionalidade diagnóstica, estará sendo excluído deste regime de veridição das técnicas psiquiátricas. A subjetividade aparece como eterna possibilidade do sujeito enganar a si mesmo, pois o sujeito, ao assumir o que há de não todo e não contínuo no gênero na sua própria constituição subjetiva, estará fora dos regimes que produzem a verdade diagnóstica. É como se estivesse se auto iludindo. Se o sujeito não falar a partir das regras que permitem falar a biologia do corpo disfórico ele será tido então como um sujeito “iludido por si mesmo”. O poder psiquiátrico, desta forma, estabelece a própria distinção entre a realidade e a ficção, formas de subjetividade reais e outras ilusórias, distinção entre loucura e normalidade do gênero, tendo como base de sustentação de seu discurso a perspectiva biologista que afirma que há biologia no gênero, e a verdade do gênero é apreendida através da fala da biologia representada no diagnóstico.

A questão que aparece então não é acerca propriamente da verdade, mas do perigo que o sujeito de gênero tem em relação a si mesmo; a psiquiatria se põe então o papel de proteger os indivíduos de si mesmos. Aqui o perigo é do sujeito se reconhecer enquanto travesti, pois a travestilidade é o próprio perigo do gênero, ao fugir da nosologia transexual. Quero dizer: a travestilidade é perigosa na exata medida em que foge da verdade médica.

Se admitimos então que a verdade do gênero está no diagnóstico, qual é a verdade do diagnóstico? Quais práticas e saberes são mobilizados no diagnóstico de transexualidade verdadeira e da transexualidade falsa?

A verdade do diagnóstico se constrói sobretudo através da distinção entre realidade e ficção que me referi acima. Certamente a verdade do diagnóstico de disforia de gênero se mobiliza pelo conceito de transexualidade em detrimento da travestilidade. A travestilidade por vezes acaba sendo simbolizada como a falsa transexualidade pelo discurso psiquiátrico. A transexualidade é investida de sentido pelo discurso psiquiátrico e a travestilidade aparece como falta de sentido.

O sentido do gênero, no discurso psiquiátrico, envolve fortemente a construção de coerência de totalidade entre vários elementos que são passíveis de análise: diversos sentimentos, valorações, aparências, performances, desejos dispersos e contínuos dos sujeitos que são postos numa relação de sentido tendo em vista certa utilidade. O sentido do gênero como “útil”, no diagnóstico, se baseia na coerência de certas normas sociais em relação ao gênero normal. A análise dessa coerência, contudo, não se dissocia das práticas de poder que fazem da cisgeneridade o destino natural dos sujeitos de gênero. A falsa transexualidade apareceria como quebra destas coerências, a falha de um sentido do sexo como um desdobramento óbvio que unisse a evidência da biologia e a evidência social da cisgeneridade.

A falha só se dá pela descontinuidade, por isso é importante acionar a verdade enquanto acontecimento para compreender a especificidade de formas de subjetivação que estabelecem linhas de fuga ao poder psiquiátrico.

O que proponho, frente a um posicionamento transfeminista, é contestar a verdade-diagnóstico que simboliza a travestilidade como falsa transexualidade. Para isso, vamos compreender a travestilidade não em sua negatividade abjeta e delirante, enquanto falta de uma coerência diagnóstica, mas como a própria verdade-acontecimento do gênero.

Eis o erro da psiquiatria: transformar o não todo e não contínuo do gênero em falso. Cabe a nós a tarefa de apontar que gênero não é passível de ser posto sob escrutínio por meio de sistema de veridição; não se trata de fazer falar a verdade inscrita na biologia e distinguir então a falsa da verdadeira transexualidade, tampouco de fazer falar a biologia através de um regime de verdade que buscaria produzir a totalidade e coerência de uma disforia de gênero.

A biologia não pode falar, é preciso entender que a subjetivação em relação ao gênero não é a fala transparente da biologia, mas a fala de um sujeito de gênero. A biologia não fala, quem fala é o sujeito. O sujeito, em sua subjetividade, tem sua espessura própria. Não é passível de ser decifrado inequivocamente por um saber psiquiátrico. A espessura do sujeito não ilude o psiquiatra e a própria pessoa de conhecer a identidade como um véu, ela não é empecilho para a verdade, ao contrário, é condição mesma de seu aparecimento.

O sujeito do gênero que conhece em si a verdade de seu próprio gênero, sob esta perspectiva, tampouco coincidirá consigo mesmo. Conhecer o próprio gênero implica o desconhecimento sucessivo de si resultando em uma destituição subjetiva – há ruptura em relação a si mesmo pois o sujeito se encontra implicado na sua própria verdade enquanto acontecimento.

Referências Bibliográficas

FOUCAULT, Michel. Aula de 23 de janeiro de 1974. In: O Poder Psiquiátrico: curso dado no Collège de France (1973-1974). São Paulo : Martins Fontes. 2006


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