Por que Elliot Page demorou para dizer que é trans?

Por Jéssica Inanna, autora da coluna Travesti Socialista do Esquerda Online.

Após Elliot Page dizer publicamente que é uma pessoa trans, essa pergunta tomou conta das redes sociais: por que demorou tanto? Muitas vezes nesse questionamento está embutida a ideia de que a identidade trans de Elliot não é real. Como se afirmar uma identidade trans na nossa sociedade fosse algo simples e fácil. Com todo o respeito, vocês não fazem a menor ideia do que estão falando.

Em primeiro lugar, essa é a mesma discussão que aparece em relação à orientação sexual. Muitas pessoas só admitem serem lésbicas, gays ou bissexuais depois de adultas. Por acaso isso significa que essa identidade é falsa?

Vejo poucas pessoas questionando por que, por exemplo, poucos jogadores de futebol admitem que são gays ou bissexuais. Isso, por acaso, significa que são todos héteros? E se algum deles, na casa dos 30 ou 40 anos, assumir que é gay, essa sexualidade seria falsa?

Se é difícil para um jogador de futebol admitir que é gay, é ainda mais difícil para alguém famoso assumir uma identidade que é marginalizada inclusive no movimento LGBTQIA+. Para entender por que ele, mesmo sendo um ator de Hollywood, não conseguiu, até alguns dias atrás, se identificar como trans, vejam essa reação negativa. Sim, houve uma reação positiva, mas também uma negativa. A identidade de gênero do Elliot virou alvo de forte polarização política. Uma questão super íntima e pessoal virou uma polêmica internacional.

Vocês acham que é fácil?

 

Sobre as crianças trans

Existem, de fato, crianças trans. Vejam, por exemplo, a Jazz Jennings, que ficou muito famosa nos EUA porque apareceu, ainda bem pequena, num documentário da BBC. Vejam no Youtube, chama-se “Meu eu secreto”. É um documentário com uma visão muito médica e patologizante, mas fica evidente ali que a identidade de Jazz, e de outras crianças trans, é real.

Em algumas comunidades indígenas, as pessoas “trans” geralmente são “trans” desde crianças e são inclusive consideradas sagradas. Como as hijras na Índia, que são sagradas para a tradição religiosa Hindu. É uma tradição que foi bastante combatida e apagada pela colonização britânica, mas persiste em algumas comunidades. No censo da Índia em 2014, o único censo no mundo que incluiu pessoas trans, várias crianças foram identificadas como transgênero pelos próprios pais. Os pais têm orgulho de terem filhas hijras, porque elas são especiais.

[Ainda assim, a polícia indiana odeia as hijras, agridem e estupram].

Agora, isso não significa que todas as pessoas trans tenham plenamente consciente, desde crianças, que são trans. É muito difícil, por exemplo, uma pessoa trans identificar-se com a imagem estereotipada e ridicularizada das travestis que nos é apresentada cotidianamente.

E mesmo quando temos consciência, sempre somos induzides a nos indagar “Será que isso é real? Não será uma invenção da minha cabeça? Será que tenho mesmo que assumir isso? Será que não tem outro jeito?”

 

Óbvio que não existe ‘gene trans’, mas e daí?

Eu vejo gente dizendo: “Ah, mas se existisse um ‘gene trans’, ele não teria demorado tanto para se identificar”. Isso é ridículo. O pano de fundo desse argumento é que a identidade de gênero só é real se for biológica. A conclusão lógica é que o gênero só é real se for biológico.

O que leva um homem a dizer “Eu sou um homem”? O que leva uma mulher a dizer “Eu sou uma mulher”? A pergunta é a mesma, para pessoas cis ou trans. Não é natural que uma característica biológica cause uma divisão social. Não se separa as pessoas em papéis sociais por causa do tamanho do polegar. Mas vemos isso acontecer com o formato da genitália, assim como com a cor da pele.

A identidade de gênero é, em si mesma, uma característica psicossocial. E ela é tão real para pessoas cis quanto pessoas trans. Mas por que só nós, pessoas trans, somos “cobaia de laboratório”, por que só a nossa identidade é que precisa de “aval da medicina” para existir?

Em vez de perguntar qual a “causa” da identidade de gênero, vamos perguntar: por que as pessoas trans são expulsas de suas famílias, das escolas, dos empregos, por que somos ridicularizadas, vilipendiadas, agredidas, estupradas e mortas? Isso, por acaso, é biológico? Mas é real! Somos tão reais que o sistema capitalista patriarcal quer nos exterminar. Por que a nossa existência incomoda, ela é prova viva, em carne e osso, contra os dogmas do sistema capitalista patriarcal de que a divisão e a desigualdade social entre gêneros é natural, biológica, necessária, benéfica.

E, ainda assim, mesmo existindo há séculos uma política de extermínio que atinge quem não se encaixa nos papéis de gênero, nós ainda estamos aqui. A “Santa” Inquisição na Europa e nas suas colônias criou órgãos dedicados ao extermínio de “sodomitas” e de “bruxas”, para exterminar não apenas as crenças “pagãs”, mas também quem não se encaixava nos padrões de gênero. E até hoje nos exterminam porque nossa “alma” está “corrompida”, possuída pelo demônio.

 

Por que iriam querer exterminar quem não é real?

Até hoje, quando Elliot se assume publicamente como trans, sua mera existência incomoda. Até mesmo pessoas que, teoricamente, deveriam ser contra o ‘status quo’, contra as ideologias, os padrões e normas do sistema. Porque não querem que Elliot exista. Por que não querem que a gente exista.

É por isso que Elliot Page demorou tanto para dizer que é trans.


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