Por um conceito de sexo transfeminista

Em tempos de carnaval, em que pessoas cisgêneras (em especial, homens) se veem livres para tratar mulheres trans* e travestis com chacotas enquanto enganadoras, acho bastante relevante falar como o aparentemente inocente conceito de sexo implica nestas formas cruéis e opressoras de se compreender as pessoas trans*. Diversos autores – como Judith Butler – vêm questionando e problematizando com bastante minúcia o conceito de sexo e o estatuto de sua materialidade. Essas discussões colaboram para uma perspectiva essencial para compreendermos práticas e teorias transfeministas, pois trazem o caráter político/ cultural do sexo, e não apenas, como tradicionalmente foi entendido, acerca do conceito de gênero. Aqui, neste primeiro momento, não me interesso em aprofundar estes debates sobre as controversas acerca da materialidade do sexo, mas sim, enquanto pessoa trans* transfeminista que está iniciando seus estudos nestes autores e nestes temas, apontar minhas impressões sobre algo que ainda me parece incipiente nestes debates: a representação do sujeito coletivo e político de pessoas trans*.

Acredito que esta falta se dê justamente pelo apagamento/silenciamento das questões tipicamente transfeminista pela brutal violência com a qual são submetidas as pessoas transgêneras, que as impedem de acessar direitos básicos, quem dirá espaços como a academia para discutir estas questões políticas (que trazem implicações nos campos do feminismo, teoria queer, antropologia, etc.). Acho que nem ao menos preciso lembrar sobre como a voz das pessoas trans* é correntemente colonizada por pesquisadores, pois isso já foi denunciado aqui neste blog, dentre outros, e em discussões nos grupos e páginas sobre o tema no facebook.

Eu acredito que o transfeminismo seja capaz de suprir esta falta, enquanto meio efetivo para que as vozes das pessoas trans* sejam efetivamente ouvidas e expostas. E é a partir desta voz, antes não ouvida, que vamos passar a compreender o sujeito político de pessoas trans*. Quero problematizar alguns conceitos sobre sexo que tem suas implicações no meu cotidiano e nas demais pessoas trans* e neste momento não vou me aprofundar nas teorias feministas ou queer, mas desejo que seja feito o convite (mais do que urgente) em se pensar de vez sobre transfeminismo e suas implicações na teoria/prática.

Como disse, existe um debate acadêmico/político acerca do conceito de sexo que visa questionar o estatuto abstrato, biologizante e a-histórico do sexo. Esse debate está imerso em diversas “polêmicas”, pois o que se discute aqui se refere ao caráter contraditório do sexo que se manifesta muitas vezes nas tensões entre áreas de conhecimento ditas “humanas” e “biológicas”. Resumindo as querelas, sexo deixa de ser um dado objetivo e passa a ser cada vez mais compreendido – em diversas nuances – como um dado prescritivo que só pode ser entendido nas relações de poder em que se encontra. Estes apontamentos são essenciais para entendermos o transfeminismo, mas não são suficientes a meu ver.

Tenho a impressão que ainda falta discutimos sobre o sujeito político que é diretamente oprimido, que neste recorte, são as pessoas trans*/mulheres trans*. Se não falarmos sobre quem são as pessoas trans* quando discutimos sobre as relações de poder que envolvem o sexo, parte essencial do debate sobre sexo é violentamente silenciado, pois não se leva em consideração integralmente sexo enquanto sua materialidade contraditória.

Pois acredito, enquanto transfeminista, que pessoas trans* são aquelas que sofrem (materialmente) a faceta transfóbica das normas de gênero/sexo. O feminismo conseguiu/tem conseguido problematizar a faceta misógina das normas de sexo/gênero e proponho que façamos o mesmo para a faceta transfóbica, e para isso, é essencial entendermos qual é o seu sujeito político. Se não dermos “nomes aos bois”, a meu ver, estaremos nos furtando de entender as diversas formas de como sexo enquanto norma se materializa. Isso significa dizer que são as pessoas trans* que sofrem com transfobia, e transfobia decorrendo diretamente das normas cisgêneras que o conceito de sexo pressupõe. A discussão sobre o sujeito político do feminismo também foi feita, a partir da dessencialização da categoria mulher proporcionado por perspectivas intersecionais que levaram em consideração questões como classe, raça e agora, também (assim espero), um recorte intra-gênero que considerará a questão transgênera. E vale a pena também ressaltar que este recorte transgênero se relaciona diretamente com a utilização do termo cisgênero enquanto conceito analítico que questiona as diversas formas de naturalização da supremacia cisgênera.

Então afinal, o que é sexo enquanto produtor de transfobia? É bastante fácil observar isso no cotidiano. Não se trata de discussões acadêmicas e difíceis de entender. Quando lemos nas matérias de jornais a forma como tratam as pessoas trans* com nomes, pronomes e flexão de gênero com o qual não se identificam, isso é uma manifestação de sexo enquanto supremacia cisgênera. Quando vemos a insistência contraditória de se levar em consideração o (suposto) respeito à identidade das pessoas trans* porém, ao esbarrar no discurso biológico que ditaria que a verdade por trás do “gênero” de uma mulher trans* estaria “escondido” o “sexo” masculino e com homens trans*, o “feminino”, o que de fato estas construções de sentido implicam? Vemos com relativa frequência esse discurso que respeita as identidades trans* até a página dois, até quando falamos em “biologia”, na qual uma suposta verdade objetiva entraria em jogo e imperaria. É sobre dizer e descrever objetivamente alguma coisa no mundo ou, ao contrário, construir um argumento, de que pessoas trans* são, apesar de suas identidades psíquicas, as “falsas”, aquelas cuja, em última instância, não são capazes de sustentar seus gêneros através de seus corpos?

A pergunta aqui foi retórica: a instrumentalização ideológica de conceitos da biologia serve para a perpetuação de pessoas trans* enquanto falsas e abjetas e a destituição de direitos civis. Quando um juiz nega o reconhecimento à retificação dos documentos às pessoas transgêneras, é usado o discurso biológico, de que tais pessoas não seriam verdadeiramente homens ou mulheres. Quando pessoas trans* são exotificadas, objetificadas, transformadas em seres de potencial “engano” e destituídas de consentimento sobre seus próprios corpos também. Quando pessoas cis se sentem no direito de tornar a transgeneridade de alguém objeto de escrutínio público, quando elas se sentem no direito a saberem se uma pessoa é trans*, caso contrário a pessoa trans* é vista enquanto praticante de alguma forma de delito, também. Quando pessoas cis acham que se trata de apenas uma “piada” chamar uma travesti de mulher falsa, tratando-a como motivo de chacota, também. Trata-se da perpetuação de uma opressão e para isso a utilização de conceitos de sexo enquanto pretenso dado biológico, objetivo, abstrato e a-histórico. Pessoas são trans*, portanto, são oprimidas pelo sexo, não apenas pelo “gênero” (entendido em sua faceta social da dicotomia natural-social).

O que eu quero é que tragamos o transfeminismo para a academia, para as discussões teóricas e políticas das questões de gênero e isso irá significar levar em consideração, em última instância, sexo como materialidade contraditória do discurso que poderá ser apreendido e entendido enquanto produtor não apenas em seu vetor de opressão misógina (às mulheres cisgêneras), mas também em seu vetor transmisógino (às mulheres/pessoas transgêneras); sexo não entendido como um produtor de normas em abstrato, mas que se manifesta e se materializa nas vidas destas pessoas. Levar, portanto, a existência dessas pessoas para estas discussões, em especial, as mais subalternizadas e desvelar como essas formas de opressão ocorrem em suas formas concretas.