A crescente visibilidade de pessoas trans na mídia e o protagonismo das mesmas em suas próprias lutas sempre me deixa muito feliz. Quando penso na época em que descobri que havia um nome para o que eu era (há uns… 12 anos atrás?), e em como eu dependia de fóruns obscuros gringos para buscar informação (alguém sequer se lembra do strap-on.org? rs) sobre transgeneridade, fico chocado com o quanto as coisas mudaram. Há MUITO mais informação por aí – informação em português, informação facilmente acessível – e há pessoas trans não só aparecendo na mídia, mas pasmem; por vezes até sendo respeitadas pela mesma (claro que isso não foi por simples passe de mágica, e exigiu muito trabalho por parte de pessoas trans que insistiram em estabelecer diálogos e/ou críticas educativas ao tratamento péssimo que a mídia tende a dispensar para nós).
Há algo, no entanto, que me vem me incomodando bastante. Existe uma ausência de vozes de pessoas trans não-normativas na mídia, nas militâncias, nos espaços que pessoas trans começam a ocupar. Falta, especialmente, a voz e a imagem de pessoas trans sem privilégio de passabilidade[1]. Nossos ícones são geralmente pessoas trans extremamente normativas, “passáveis”[2], higienizadas; porque claro, a medida do sucesso para pessoas trans é o quão perto elas conseguem chegar da “passabilidade” cis, afinal. E essa lógica não é apenas externa à comunidade trans, mas internalizada pela mesma também. No entanto, raramente falamos sobre isso. Começamos a discutir intersecionalidade, começamos a falar sobre racismo, misoginia, preconceito de classe, etc, mas… pouco vejo sobre privilégio de passabilidade.
Suspeito que isso talvez tenha a ver com a naturalização da “passabilidade” como um ponto aonde todas as pessoas trans chegam eventualmente, ou no mínimo desejam chegar (e se esforçam e se sacrificam ao máximo, para isso). Quem não acessa esse privilégio é percebido como “em processo de transição”; incompleto; ou até preguiçoso (porque ora, você deve desejar e deve trabalhar muito duro para alcançar isso). Esse sujeito é muitas vezes infantilizado (como se fôssemos pré-[trans]púberes, menos maduros, menos experientes [nossas experiências são diferentes; não inferiores] ou capazes), também. E essa, obviamente, não é a imagem que muitas dessas pessoas trans “passáveis” desejam ter associada a elas. Por mais que esse sentimento muitas vezes não seja abertamente declarado, pessoas como eu ocupam um lugar inferior na hierarquia da legitimidade trans. Nossa identidade não é só percebida como menos legítima por pessoas cis – mas também, muitas vezes, por nossos próprios pares, em nossa própria comunidade.
A ausência de pessoas trans sem privilégio de passabilidade em posições de protagonismo me parece um reflexo dessa lógica, muitas vezes velada, muitas vezes inconsciente. E a maior perversidade disso me parece ser a de que no dia-a-dia – quem mais toma porrada, por ser compulsoriamente visível como trans – são justamente esses sujeitos. Quem sofre assédio em banheiro é quem não tem privilégio de passabilidade. Quem tem seus pronomes desrespeitados na maioria de suas interações diárias é quem não tem privilégio de passabilidade. As pessoas que são agredidas arbitrariamente na rua por ser trans são – adivinhem – quem não tem privilégio de passabilidade. E a lista segue.
Enquanto sujeito que já experienciou níveis diferentes desse privilégio (mas jamais 100%), e que atualmente possui quase nenhum, eu sou bastante sensível aos benefícios proporcionados por ele. Enquanto todas as pessoas trans têm de lidar com um processo legal para buscar a retificação de seus documentos, apenas as que não desfrutam de privilégio de passabilidade seguem passando por constrangimento e assédio mesmo depois de conseguirem os documentos corrigidos (e por tabela, seguem sofrendo a mesma exclusão institucional – seguem, por exemplo, sendo dificilmente empregáveis). Enquanto todas as pessoas trans têm de lidar com transfóbicos que desqualificam seu gênero, apenas pessoas sem privilégio de passabilidade têm que lidar com seus gêneros sendo desqualificados por todo e qualquer estranho em suas interações diárias. Por mais que TODA pessoa trans esteja sujeita a transfobia e cissexismo, quem não acessa “passabilidade” está vulnerável a isso num nível desproporcional. É todo segundo de todo dia, é toda interação, é corrigir a linguagem alheia o tempo todo, é depender a boa vontade do outro sempre. Para mulheres trans (e outras pessoas trans designadas homem ao nascer), é estar sujeita a agressão a todo tempo, em todo lugar, a toda hora. Para homens trans (e outras pessoas trans designadas mulher ao nascer), é estar sujeito a misoginia – e isso é complicado de admitir, aceitar, e pensar sem nos fazer sentir menos masculinos por isso.
Sei que às vezes pode ser difícil repensar nossos privilégios e reconhecer os benefícios sociais que possuímos por causa de determinada característica, mas eu acho que existe uma grande potência nessa ferramenta analítica. Reconhecer nossa própria opressão é mais fácil – onde sentimos dor, percebemos que uma ferida está sendo causada. E quando não sentimos essa dor? Tudo apenas nos parece “normal”. Desnaturalizar essa “normalidade” e perceber que nem todos se beneficiam dessa ausência de dor é mais difícil. Enxergar e problematizar o que é que nos protege da dor é mais difícil ainda.
O reconhecimento de nossos privilégios não só nos torna cientes dos benefícios que recebemos, como também valida a dor de quem não desfruta dos mesmos. Somente ao percebermos em quais vetores socioeconômicos somos privilegiados podemos começar a nos responsabilizar pelo poder que isso nos garante. E somente ao ativamente procurar nos responsabilizar por esse poder podemos genuinamente tentar agir como aliados a quem não o tem.
Muitas vezes o conceito de privilégio é reduzido a uma lógica dicotômica, simplista, e acaba se tornando estéril. Não se trata, aqui, de estabelecer a existência de um Oprimido e um Privilegiado universais; mas sim de perceber que existem diversas esferas identitárias (e contextuais) onde podemos desfrutar de mais poder do que determinado sujeito, e que quando isso ocorre, devemos tomar cuidado para não exercê-lo sobre o outro. Isso não significa, no entanto, que ocupamos uma posição absoluta em termos de capacidade de oprimir; pode-se ocupar um espaço hegemônico, mas não outro (por exemplo: uma mulher cis pode sofrer misoginia, mas não transfobia [transmisoginia]. Ela pode, assim, tanto sofrer com ataques sexistas, como também perpetuar transfobia. Ao mesmo tempo em que ela é vulnerável por ser mulher, ela exerce o poder de oprimir pessoas trans por ser cis). Por mais que possa ser tentador reduzir esse conceito a um maniqueísmo binarista, a realidade é que em nossa grande maioria, temos o potencial tanto para oprimir como para sermos oprimidos.
Uma grande potência que vejo nessa ferramenta analítica, então, é que eu posso me utilizar desse local de fala privilegiado para tentar beneficiar, em algum nível, quem não o ocupa. Por exemplo, eu possuo privilégio de branquitude. Se eu estou em uma situação social com outras pessoas brancas onde evidencio racismo, posso problematizar esse discurso e não deixá-lo passar impune. E, se me deparo com uma plataforma para me manifestar sobre questões relativas a racismo, posso promover uma pessoa não-branca para ocupar esse espaço e protagonizar esse discurso. E posso, evidentemente, intervir diretamente em situações de agressão (discursiva ou não) racista. Como sei que me beneficio desse privilégio arbitrário, também sei que é minha responsabilidade manifestar-me ativamente contra o abuso do mesmo.
Pessoas trans brancas deveriam se manifestar aberta e vocalmente em solidariedade a pessoas trans (e cis) não-brancas e o racismo que as afeta; homens trans deveriam se manifestar aberta e vocalmente em solidariedade a pessoas não-homens (trans ou cis), e ao sexismo ao qual estão sujeitas; pessoas cis deveriam se manifestar aberta e vocalmente em solidariedade à transfobia sofrida por pessoas trans; pessoas de classe média/alta deveriam se manifestar em solidariedade ao preconceito de classe sofrido por pessoas de classe trabalhadora/baixa; e assim por diante. E isso significa, em grande parte, criticar sua comunidade e membros da sua comunidade quando os mesmos incorrem em discurso ou comportamento problemático. Significa compreender e acolher a dor (e a reação) da comunidade que foi afetada por essa ação opressora. Significa tentar assegurar que seu movimento seja protagonizado por pessoas diversas – especialmente aquelas cujas interseções de características não-hegemônicas as tornam mais vulneráveis. Significa ter ética e empatia suficientes para não decidir apenas “abafar” comportamento problemático em nome de “sororidade” ou “fraternidade” (seletivas, né).
Eu sinto muita falta de pessoas aliadas que tenham esse tipo de prática. Eu acho muito importante esse papel que não usurpa protagonismo, mas que utiliza do alcance de seu privilégio para impedir que transfobia, misoginia, racismo, capacitismo, preconceito de classe, etc., passem impunes. E eu, pessoalmente, gostaria muito de ver mais pessoas trans com privilégio de passabilidade utilizando o mesmo para empoderar pessoas que não o possuem, ao invés de apenas se isentar da discussão porque não lhes é mais necessária. Eu gostaria muito de ver mais pessoas trans reconhecendo esse privilégio, criticando a hierarquia de “quem é mais trans”, bem como o mito cissexista de que só quem alcança “passabilidade” é legitimamente trans ou merece ter seu gênero respeitado, e ajudando quem não é “passável” a protagonizar o ativismo, também. E é por essas e outras que eu fico muito emocionado quando a Laverne Cox fala sobre a própria experiência de não-“passabilidade” e o quanto isso desumaniza, mesmo dentro da comunidade trans. Porque é muito triste só ser visível quando é pra tomar porrada do mundo e ser educador compulsório em espaços onde outros têm a opção de se preservar. E é mais triste ainda sentir que ao invés de ter uma comunidade que reconhece, valoriza e acolhe isso, se ver intra-marginalizado na mesma.
Vamos todes empatizar, melhorar, e nos comprometer a acolher os sujeitos mais vulneráveis entre os nossos? Isso é que é realmente subverter a lógica hegemônica de dominação. É optar pelo cuidado – tanto consigo, quanto com o outro.
(Entre a concepção e publicação deste texto, Caitlyn Jenner apareceu na capa da Vanity Fair e Laverne Cox fez um post maravilhoso sobre as expectativas cisnormativas acerca da aparência de pessoas trans. Deixo aqui um link ao texto [em inglês] no tumblr dela que super vale a leitura: http://lavernecox.tumblr.com/post/120503412651/on-may-29-2014-the-issue-of-timemagazine)
[1] Utilizo aspas quando o conceito de “passabilidade” é aplicado como substantivo ou adjetivo que busca qualificar o sujeito em reconhecimento ao absurdo do termo que se pretende referente a uma suposta substância metafísica exclusivamente cisgênera, e não utilizo aspas quando o mesmo qualifica privilégio (porque em minha compreensão aqui tratamos da concretude política das relações de poder).
[2] Utilizo o conceito de “passabilidade” para significar “lhe perceberem como cisgênere” – e não no sentido que supõe que o gênero de pessoas trans seja um simulacro que somente pode aspirar se aproximar da substância metafísica do gênero de pessoas cis (ou seja, “passar como homem”, “passar como mulher”; SOMOS homens, SOMOS mulheres, ou SOMOS nenhum dos dois/ambos/variações/etc, se assim nos enunciamos).
Comentários
6 respostas para “Por um diálogo sobre “passabilidade”, visibilidade e protagonismo dentro da comunidade trans”
ola, nicholas. achei seu texto claro, bem escrito e sem linguagem acadêmica, o que pra mim é uma qualidade num texto de blog. fica gostoso de ler e facil de entender.
porém, gostaria de apontar um trecho problematico, que talvez se deva ao seu desconhecimento de casos existentes. vc afirma que ” uma mulher cis pode sofrer misoginia, mas não transfobia [transmisoginia] “. infelizmente isso nao é verdade.
existem sim mulheres cis que sofrem transfobia, transmisoginia, porque sao confundidas com travestis e por isso sao agredidas. na midia existem varios casos, como a gracyanne barbosa, que é sempre criticada, chamada de traveco, parece homem, etc. e além disso, existem mulheres que nem sao musculosas, mas que nao têm uma aparencia dentro dos padroes de feminilidade ditados pela sociedade e por isso sao agredidas.
estou falando por conhecimento de causa.
um abraço,
camila.
Oi Camila,
Muito obrigado pelo seu comentário! O que você relata é o que eu chamaria de dano colateral. Uma mulher cis pode sofrer com a reverberação da transfobia ou da transmisoginia, mas ela não sofre as exclusões sociais específicas reservadas para pessoas trans; e, no final, o grande parâmetro de abjeção segue sendo a mulher trans ou a travesti. Ela é que é considerada como tão intragável que o maior insulto a uma mulher cis – veja só – é ser comparada a uma mulher trans ou uma travesti. É o imaginário cissexista acerca do corpo dessas mulheres que gera esse tipo de vigilância. (E, claro – padrões sexistas também podem violentar mulheres que não se encaixam em um padrão hegemônico de feminilidade, mas nesse caso então lidamos com exigências sexistas e misóginas, e não transmisoginia especificamente).
É análogo ao cara cis hétero, por exemplo, que apanha na rua porque abraçou o amigo e foi percebido como gay. Ele não é o alvo da homofobia – mas sofreu o dano colateral da mesma. Esse é um dos motivos pelos quais é tão importante sempre pensarmos em termos intersecionais – porque não só desejamos ver todas as pessoas livres de todo tipo de opressão, mas também porque a agressão direcionada a determinado grupo político do qual sequer fazemos parte também pode acabar por, inadvertidamente, atingir a gente.
Dito isso, essa é a perspectiva que te ofereço enquanto homem trans. Eu acho que seria muito mais benéfico se uma mulher trans ou travesti pudesse participar desse diálogo, já que eu não possuo essa vivência e não é meu local de fala. Abraços!
nicholas, o que estou relatando é caso de transmisoginia sim, e como eu disse, com conhecimento de causa.
tenho uma amiga mulher cis que é vitima diaria de transfobia, nua e crua. ela é chamada de traveco diariamente, assediada por homens que querem “conferir” se ela é homem ou mulher, ja jogaram copo de cerveja nela quando ela passava em porta de bar achando que ela era travesti, ja foi quase expulsa de banheiro por acharem que nao é mulher, etc etc. esse eh so um resumo do que ela passa.
e ela sofre transfobia inclusive de mulheres cis.
se tudo isso é apenas dano colateral, entao o que seriam os danos diretos?
Oi Camila,
Como eu disse, não nego o dano, mas ele é colateral porque se soubessem do status cis da mulher em questão as violências não ocorreriam. Novamente, é uma violência cuja intenção é atingir mulheres trans e travestis, e peço que em comentários subsequentes você evite utilizar termos transmisóginos (pode referenciá-los exatamente assim: termos transmisóginos) porque eles podem machucar quem está lendo. Existem diversas violências que só atingem pessoas trans, como: não ter acesso a documentação apropriada; não ter acesso a emprego ou inserção institucional; não poder ir ao médico sem ter de se preocupar com ele respeitar seu nome social, te agredir ou te expulsar se seu status trans ou travesti for descoberto; ser expulsa de casa pela família porque se é trans ou travesti; ser assassinada pelo seu cônjuge por ser trans ou travesti, e ter um sistema legal que aceita a justificativa de “pânico trans” para o seu assassinato; ter a mídia usar seu nome original de registro após a sua morte quando noticiar a mesma; etc. Esses são alguns exemplos de exclusão trans-específica que me vem à mente, mas como eu disse antes, uma mulher trans ou travesti poderia contribuir muito mais para essa discussão do que eu.
nicholas,
nao vejo em quê os termos que eu usei poderiam machucar alguem, pois nao estou ofendendo ninguem. estou narrando uma experiencia. nao é assim que se faz militância, tentando cercear a liberdade de expressao, ainda mais num blog.
a opçao que vc tem é de excluir e nao aceitar meus comentarios, mas determinar o que e como eu devo escrever, vai um pouco além. sou mulher trans e apenas estou dividindo minha experiencia.
o inimigo a ser combatido é outro.
prometo que é a ultima vez que leio seu blog e escrevo nele. nem precisa aceitar o comentario.
boa sorte.
Olá,
Li pela primeira vez hoje o teu blogue, gostei deste post. É um assunto que me debato frequentemente (faço uma referencia pessoal no meu blogue: http://www.overdestiny.com/ser-confundivel/).
Ser confundível, para muitxs, passa a ser um objectivo necessário para que possam usufruir de uma vida mais estável e de menor agressão (física ou psicológica).
Obrigada,