Por Uma Historiografia Transfeminista

Por Inaê Diana Ashokasundari Shravya.

“o que é bem conhecido em geral, justamente por ser bem conhecido, não é conhecido.”

Hegel, Prefácio à Fenomenologia do Espírito.

O historiador Luiz Mott, do Grupo Gay da Bahia, faz um trabalho historiográfico inegavelmente importante sobre a perseguição às “sexualidades periféricas” -para usar um termo foucaultiano- no período colonial. Contudo, como ocorre com a maioria dos historiadores, ele ignora a própria historicidade das categorias aplicadas, como é o caso de “homossexual”. Um exemplo é o caso de Xica Manicongo, que ele designa homossexual. Ela não era homossexual, tampouco foi a primeira travesti, tal como gostariam algumas transfeministas que incorrem no mesmo equívoco que Luiz Mott. Como consta nos próprios documentos analisados por Mott, Xica Manicongo, oriunda do Congo, era identificada como “quimbanda” ou “jimbanda”, um grupo social angolano que, se existisse hoje, poderíamos compreender como mulheres trans. As quimbandas eram bastante respeitadas na sociedade angolana, chegando algumas vezes a serem denominadas como “grande mãe”.

Mott em nenhum momento questiona a descrição contida nos documentos em sua função ideológica. Descrever não é meramente “descrever”, mas um ato de significação social. Com bem salienta Bakhtin: “Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis etc. A palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial”.

Peguemos, por exemplo, as Ordenações Manuelinas:


“Defendemos, que nenhum homem se vista, nem ande em trajos de mulher, nem mulher em trajos de homem. Nem se mesmo andem com mascaras, falo se for pera algumas festas, ou jogos; e quem o contrário de cada uma das ditas coisas fizer, se for piam seja açoitado publicamente, e se for Escudeiro, e ou acima, será degredado dois anos para Alem, e mais cada um, a que cada uma das ditas coisas for perdoado, pagará dous mil reaes para quem o acusar” (ORDENAÇÕES MANUELINAS, Livro V, Título XXXI).

Se há relatos como os presentes em História Geral das Guerras Angolanas, de Antonio de Oliveira Cardonega, onde o autor identifica as quimbandas como “homens que se comportam como mulheres”, é preciso entender como uma determinada ideologia se faz presente através dos relatos do próprio autor, não que ele simplesmente se deparava com objetos naturais. Quer dizer, a evidência de quimbandas serem “homens que se comportam como mulheres”, não possuindo a mesma qualidade entre os habitantes do Congo, só faz sentido para os colonizadores. 

Quer dizer, se de acordo com os registros coloniais as quimbandas eram “homens que se comportavam como mulheres”, efetivamente elas não eram consideradas “homens”  no interior da sociedade em que viviam, e tal afirmação está em conformidade com o que era estabelecido pelas Ordenações. 

Mott simplesmente considera que as relações sociais de gênero, as quais determinam o que vem a ser “homem” e o que vem a ser “mulher”, sempre existiram, não só na Europa, mas em qualquer lugar do mundo, quando ele poderia muito bem questionar de que relações sociais se trata, ao invés de presumir determinadas relações sociais – como as de gênero e de raça-, já que faz uso indiscriminado de determinadas categorias, fazendo jus, de certa forma, ao projeto colonial mesmo, pois se detém única e exclusivamente sobre os seus efeitos, ignorando o que lhe estrutura discursivamente. A respeito disto, Bakhtin nos diz que o discurso é produto duma interação verbal/social onde “a situação e os participantes mais imediatos determinam a forma e o estilo ocasionais da enunciação. Os estratos mais profundos são determinados pelas pressões sociais mais substanciais e duráveis a que está submetido o locutor”. Se por um lado o Luiz Mott nos possibilita, com a sua pesquisa historiográfica, termos ciência de que “sexualidades periféricas” sofreram perseguição durante o período colonial, por outro, ele lança uma sombra sobre estas mesmas “sexualidades periféricas” ao aglomerá-las indiscriminadamente sob a categoria “homossexual”, quando ele poderia tentar compreender como se constituíam as relações sociais durante o período colonial, o que nos permitiria perceber as fragilidades e insuficiências das categorias empregadas e, porque não, do próprio binarismo sexual, da diferença sexual propriamente. 

Nem sempre existiram “homens” e “mulheres”, assim como nem sempre existiram “heterossexuais” e “homossexuais”, sendo necessário tentar compreender as relações sociais existentes nas sociedades colonizadas, bem como nas colonizadoras, pois elas também possuem suas contradições. Agora, este tipo de pesquisa, que leva em consideração as relações sociais existentes ao invés da aplicabilidade de determinadas categorias, exige de nós a desnaturalização de efeitos ideológicos que costumam orientar nossas pesquisas. Importa salientar: tais pesquisas devem servir para que entendamos como nos tornamos quem somos e, a partir deste entendimento, elaborarmos outros modos de subjetivação que possibilitem a nossa emancipação, não para meramente relatarmos nossas vivências acreditando firmemente que tal procedimento estaria isento de ideologia. 


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Uma resposta para “Por Uma Historiografia Transfeminista”

  1. Avatar de Marcela Cerqueira
    Marcela Cerqueira

    Boa tarde, mores, achei seu texto muito interessante e gostaria de ter acesso as referencias que você utilizou para a construção do texto, inclusive a parte que fala sobre a realidade das quimbandas em congo hoje em dia. Agradeço a atenção e aguardo seu retorno.