Por Beatriz Pagliarini Bagagli.
Vi um texto do QG Feminista compartilhado por Patrícia Lélis sobre como a noção de gênero incomoda ao radfem pelo fato de incluir mulheres trans e travestis. Sim, de fato, a noção de gênero inclui pessoas trans – e justamente por isso a noção incomoda tanto essas feministas radicais trans-excludentes e o movimento ultraconservador que luta contra a “ideologia de gênero”. O fato desse alegado movimento feminista radical reivindicar ser “crítico de gênero” não é uma mera coincidência. Isso redunda em dizer que a inclusão e visibilidade de mulheres trans e travestis incomoda.
Agora, eu gostaria de abordar mais um aspecto do texto: o argumento de que a violência contra as mulheres cis seria de alguma forma completamente diferente da violência contra mulheres trans (por isso elas advogam para o uso estrito da noção de sexo biológico) pois, segundo o texto: “a violência pela qual seres humanos do sexo feminino passam NÃO é por conta de como nos apresentamos ao mundo, ou da identidade que consideramos ter, ou de como nos sentimos e portamos, é pelo simples fato de sermos do sexo feminino; basta a identificação de um corpo de fêmea para que nos tornemos instantaneamente e involuntariamente alvo de violências”.
É preciso frisar muito bem essa concepção a respeito de como o radfem entende a violência destinada a mulheres trans e travestis: violência como algo que se origina na performance de gênero de mulheres trans e travestis, na forma como supostamente nos portamos e como supostamente nos identificamos.
Mas a violência contra as mulheres trans e travestis realmente se origina daí, para justificar essa diferença em relação a violência contra mulheres cis? Não. Por quê? Porque a transfobia não se origina no fato de uma mulher trans expressar a sua identidade feminina publicamente.
A transfobia é estrutural. O que significa dizer que a transfobia é estrutural? Significa dizer que ela antecede qualquer ato individual de uma pessoa trans em expressar a sua identidade trans e sofrer violência. A violência se estrutura, nesse sentido, de forma prévia à performance de gênero ou identificação de mulheres trans e travestis.
Ou seja: a concepção do radfem a respeito do que seja a violência de gênero contra mulheres trans e travestis é algo da esfera do individual: da perfomance individual de uma mulher trans, da forma como individualmente uma mulher trans se porta (para só a partir daí sofrer uma violência de gênero).
Acontece que essa concepção é equivocada. Elas utilizam essa noção a respeito da transfobia como da esfera individual para contrapor com o movimento que elas reivindicam ser de mulheres “nascidas mulheres”, para legitimar a luta contra a violência apenas de mulheres cis. Mas ao fazerem isso, elas estão traindo a concepção materialista que elas julgam defender, ao representar a violência transfóbica como da esfera do indivíduo, ao invés da estrutura.
A violência contra mulheres trans e travestis é igualmente involuntária. Sugerir o contrário, como faz o trecho acima, é o mesmo que culpabilizar as vítimas de transfobia, ou seja, é culpabilizar, individualmente, as mulheres trans e travestis pelas violências que elas sofrem ou estão sujeitas a sofrerem.
É precisamente isso que elas fazem: ao dizerem que a violência contra mulheres cis é involuntária elas estão sugerindo que mulheres trans e travestis de alguma forma procuram voluntariamente se expor à violência de gênero. Percebem o quão equivocado e profundamente anti-feminista esse pensamento realmente é?
Quando entendemos que a transfobia é estrutural entendemos também que pessoas trans igualmente estão “instantaneamente” vulneráveis a violência de gênero, tal como mulheres cis. A transfobia não ocorre por conta de como pessoas trans se portam. A transfobia acontece porque a sociedade se estrutura por meio de normas cisgêneras que marginalizam, estigmatizam, discriminam e excluem pessoas trans – independentemente da performance de gênero individual das pessoas trans; anteriormente à forma como, em termos individuais, pessoas trans expressam seus gêneros.
A violência pela qual pessoas trans passam igualmente não é por conta dos nossos sentimentos. Nada do que o texto elenca como a fonte da violência transfóbica realmente importa também, então não deveria fazer o menor sentido o argumento acima que sustentaria essa suposta diferença entre a luta de mulheres cis e trans. Pessoas trans sofrem transfobia, retomando a formulação, “pelo simples fato de sermos pessoas trans”.
Somos igualmente alvos de violência de forma “involuntária”. A luta pelos direitos das mulheres trans não é antagônica com a luta de mulheres cis e vice-versa. Quando uma avança e outra também avança. Quando lutamos contra a lógica da culpabilização da vítima de violência de gênero, estamos lutando pelos interesses e direitos de mulheres cis, trans e travestis.
Leia também o posicionamento da ANTRA.
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Comentários
Uma resposta para “Porque o radfem não compreende a transfobia como violência de gênero: partindo de um texto do QG Feminista”
Eu entendo diferente a questão. Começando pelo início, o texto não diz que violência dw gênero não inclui violência contra mulheres trans pelo contrario. É porque violência de gênero inclui pessoas trans que o texto argumenta que a expressão não deixa clara as diferenças entre os tipos de violência sofridos por mulheres e por pessoas trans.
O que o texto diz é que a violência contra mulheres independe de gênero, do que elas performam. Basta ser mulher, de feminina a butch caminhoneira, para sofrer violência.
Evidente que pessoas trans não sofrem violência porque querem e precisam ser protegidas das violências. A questão é que nesse caso a violência tem a ver com o gênero e não com o sexo, pois um homem masculino não vai sofrer violência, um homem feminino vai (sendo ele gay ou não, se identificando como trans ou não). Não é nem questão de escolher voluntariamente ser homem feminino, como se desse pra escolher não ser assim e aí escapar de violência. Mas é que nesse caso a violência tem sim a ver com gênero, em oposição a uma violência contra mulheres que tem a ver com seu sexo, independente de performance de gênero…
Quanto à questão de ser do âmbito do individual, também discordo da leitura. É o feminismo liberal, como o nome bem diz, que coloca foco no indivíduo e no que cada mulher poderia fazer ou deixar de fazer, como se houvesse de verdade “escolha” na estrutura que vivemos ou se “empoderamento” fizesse algum sentido quando é apenas no âmbito individual. Nenhuma feminista radical ignora as questões estruturais de violência ligada a gênero. E é porque entendemos que gênero é violência que falamos em abolição do gênero, que é o que liga feminilidade a mulher e masculinidade a homem, punindo quem desvia disso (incluindo aí quem se identifica como mulher trans). Se não queremos que nos seja imposto gênero, porque entendemos que é um ferramenta de opressão seja querendo manter as mulheres na feminilidade seja punindo as que desviam disso, temos mesmo que apontar constantemente o que é sexo e o que é gênero… e isso não significa negar a existência de pessoas trans, que também se veriam libertadas pela inexistência de imposições de gênero que as levam a transicionar pois a sociedade não aceita pessoas de um sexo que não performem o que é esperado delas.