Em discussões sobre as questões das pessoas travestis, transexuais e trans, eu aposto que você já ouviu a seguinte expressão “eu não entendo o porquê de mulheres trans existirem, já que ao se assumirem como mulheres, perdem privilégios masculinos”. Quando interseccionamos com a questão da sexualidade, a mesma questão volta: ao falar sobre mulheres trans que tem relacionamentos afetivos – ou sentem atração – com/para outras mulheres, assim como no caso de homens trans com/para outros homens, se interroga a mesma “falta de sentido”; não faria sentido “um homem virar mulher” para se relacionar com mulheres assim como não faria sentido uma “mulher virar um homem” para se relacionar com homens.
A questão que se coloca aqui é: qual é o sentido das vidas trans? A questão do “sentido da vida” neste caso passa a ser a tentativa de explicar a razão e as origens das incongruências de gênero (em relação à cisgeneridade hegemônica), ou seja, das identidades trans. Em outras palavras, poderíamos dizer que se trata também de saber se as vidas trans realmente importam. E importam, sobretudo … para quem, sob qual perspectiva?
A relação entre saber e poder se dá na medida em que a tentativa de “saber” sobre a transgeneridade se esbarra num enigma incontornável (a falta de sentido das vidas trans é assumida como um pressuposto fundante), o que implica no exercício de um “poder” sobre essas vidas trans – tidas como passíveis de correção. O saber, neste caso, se dá sob as formas de um não-saber como exercício do poder e controle sobre vidas e corpos.
Para a perspectiva de quem é trans, contudo, o “sentido da (própria) vida” reside no próprio fato de podermos vivê-la. Ou seja: o sentido da vida é imanente à própria condição de possibilidade da vida, não necessitando de nenhuma justificativa externa para validá-la ou explicá-la. Ou seja: a questão do sentido da vida trans, para uma pessoa trans, deixa de ser uma abstração (as vontades de encontrar uma “explicação” com base numa pretensa “lógica” ou “teoria” vinculadas ao exercício de um poder) e passa a ser uma questão prática (uma questão da ética, de constituição de formas de vida e subjetividade, da própria liberdade, a liberdade de ser algo para além da assunção da cisgeneridade).
Quando se diz que vidas trans não fazem sentido se pressupõe que as pessoas trans estariam construindo suas próprias vidas a partir do erro, ou seja, a partir de uma espécie de “auto engano”. Ou seja: é errado ser trans simplesmente porque nem ao menos faz sentido sê-lo, então seria necessário “alertar” (“conscientizar” para a verdade?) as pessoas trans sobre este erro fundante acerca de si mesmas. A passagem entre o que é considerado como “não tendo lógica” para o que “é errado” é automática.
A tarefa do transfeminismo é justamente desautomatizar esta relação e com isso, questionarmos tais evidências.
Ao se pressupor que certas formas de vida são marcadas pelo erro, automaticamente se defende uma prática que vise corrigi-las rumo à normalidade. A assunção de que “você não precisa ser trans” passa rapidamente a significar que “você deve ser cis”; ou melhor, você não deve ser trans na medida em que a cisgeneridade é assumida como natural, como se fosse um ponto de referência existencial neutro que pudesse balizar a questão da relevância de uma forma de vida. É nesta medida que o exercício do poder se camufla através das vontades de saber.
Trata-se de uma ideia equivocada achar que a vida de uma pessoa trans só passaria a ter sentido se ela fosse “corrigida” em direção à cisgeneridade compulsória.
O transfeminismo é a ideia radical de que a condição de possibilidade das vidas trans não deve estar subordinada às tentativas de “explicação” da própria vida pela assunção de uma “falta de sentido” fundante. Neste gesto, restituímos o sentido da vida, ou seja, dizemos que as vidas das pessoas trans fazem sentido porque são dignas de serem vividas – deslocando a questão da abstração para a prática. Questionamos o local de natureza da cisgeneridade. O transfeminismo implica uma outra “hermenêutica da vida”, para além das formas de rebaixamento e culpabilização das subjetividades trans.