Quando Chimamanda circula nas mídias, são pelos subentendidos que a transfobia aparece, entenda

Por Beatriz Pagliarini Bagagli.

Com a mais recente participação de Chimamanda Ngozi Adichie no Roda Viva, vemos circular notícias a respeito da autora, o que suscita o retorno do debate sobre suas colocações problemáticas a respeito do que a autora supõe ser as experiências de pessoas trans, particularmente de mulheres trans. Já escrevi sobre isso no texto “Quantos livros de mulheres trans será que a Chimamanda já leu?”, no Blogueiras Feministas.

E com isso, obviamente, vemos de novo os seus admiradores fazendo comentários sobre as supostas “experiências” de mulheres trans e travestis para corroborar a posição de Chimamanda, no sentido de buscar demonstrar que mulheres trans e travestis são de alguma forma privilegiadas pelo patriarcado. E as pessoas fazem isso de forma sutil ou cínica mesmo, para não parecerem que estão explicitamente dizendo que mulheres trans são “homens sexistas que se beneficiam do machismo”; reiterando inclusive a ideia de que “pessoas trans estão interpretado mal e equivocadamente o que ela realmente quis dizer”.

Mas dizer que “mulheres trans são na verdade homens sexistas” é o que elas querem mesmo, sutilmente, dizer – pois é exatamente isso que autoras como Chimamanda, J. K. Rowling e demais feministas radicais trans-excludentes ou autointituladas “críticas de gênero” defendem: a desarticulação das experiências de mulheres trans da luta feminista ao acusarem mulheres trans e travestis de “reforçarem estereótipos de gênero” e, com isso, a invisibilização de suas narrativas e experiências, assim como das próprias opressões de gênero que mulheres trans e travestis estão expostas, ao presumirem equivocadamente que as experiências de mulheres trans coincidem com as de homens cis sob o sistema patriarcal.

Chimamanda recentemente fez falas sobre as pessoas que “estão receosas de poderem expressar suas opiniões por medo de terem opiniões erradas e serem canceladas/atacadas”. Como relata matéria no Pink News, isso se dá num contexto em que a autora ataca dois autores negros e queer no mês do orgulho LGBT que a haviam criticado sobre suas posições sobre mulheres trans.

Um discurso muito semelhante ao que vemos da famigerada autora da série Harry Potter, que se ressente das críticas que recebe pelo fato de distorcer e difamar a luta por direitos e reconhecimento da população trans. Quer dizer, o foco aqui é como pessoas transfóbicas são supostamente cerceadas em seu direito de liberdade de expressão, ao invés de como os seus próprios discursos e subentendidos impactam no silenciamento das pessoas trans. Ao estigmatizar pessoas trans, ao nos caracterizar como ameaças para a sociedade, ao invisibilizar as experiências concretas das pessoas trans em seus discursos… é precisamente isso o que essas autoras fazem.

Em comentários nas redes sociais, leio por exemplo que mulheres trans são “protagonistas” na luta trans, dizendo coisas como “quando pensamos em pessoas trans a primeira coisa que vem em nossa mente são mulheres trans e travestis, não pensamos em homens trans, não tem tantos homens trans na militância, isso mostra que pessoas que nascem com vagina são invisibilizadas, mesmo dentro do próprio movimento trans”.

Tem muitos subentendidos aí que precisam ser expostos criticamente. Vejamos: o fato de você pensar em mulher trans ou travesti quando fala em pessoa trans é sinal realmente de que mulheres trans e travestis são “protagonistas” na luta trans por receberem privilégio de socialização masculina enquanto homens trans e pessoas transmasculinas não?

Não é bem assim… o fato de você conceber a imagem de mulheres trans e travestis na sua cabeça ao falar de “militância trans” não significa realmente muita coisa sobre a presença ou ausência deste suposto “protagonismo”… significa na verdade que mulheres trans e travestis são simplesmente mais visíveis em nossa sociedade do que homens trans. Mas o fato de mulheres trans e travestis serem mais “visíveis” do que homens trans não implica que sejamos “bens vistas”: somos bastante “lembradas” porque somos profundamente estigmatizadas. Sim, visibilidade é parte importante da luta, pois nós lutamos pela visibilidade positiva, mas nem todo tipo de visibilidade por si só realmente ajuda.

Não basta visibilidade para avançarmos as nossas pautas. Visibilidade negativa, o que chamamos de estigma, faz com que tenhamos que gastar um precioso tempo em justamente desmontar várias imagens negativas sobre a nossa população. Isso não é sinal de privilégio, é sinal de que somos alvos preferenciais de ódio transfóbico.

Continuando… as pessoas que alegam que homens trans são invisibilizados no movimento trans na verdade não estão buscando legitimamente fortalecer a luta e visibilidade de homens trans e pessoas transmasculinas. Elas estão apenas usando os homens trans para querer provar uma tese a respeito de mulheres trans e travestis, a saber: de que mulheres trans e travestis são privilegiadas pela “socialização masculina” enquanto homens trans seriam tão oprimidos pelo patriarcado quanto mulheres cis.

Essas pessoas não estão de fato interessadas em darem visibilidade para a produção teórica e militante de homens trans e pessoas transmasculinas, porque se elas realmente estivessem interessadas nisso não tratariam pessoas transmasculinas com paternalismo. Se elas realmente estivessem interessadas em promover a luta de pessoas transmasculinas elas não pressuporiam para início de conversa que a luta de mulheres trans e travestis possa ser de alguma forma antagônica com a luta dos homens trans e pessoas transmasculinas – precisamente pelo fato de que quando a luta de mulheres trans avança a dos homens trans e pessoas transmasculinas também avança, e vice-versa.


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