Quando é que vai ser normal entre nós não sentir inveja de mulheres trans passáveis?

Por Laura Venancio de Souza.

Descobri, esses dias, que uma menina trans, que é uma celeb de internet, está sendo malhada publicamente porque disse coisas bem feias sobre outras meninas trans, tirando sarro delas por não serem tão passáveis (ou seja, não serem tão parecidas com mulher cis), por serem mal aquendadas e etc. E ela é toda passável, né?

Agora, não tem coisa mais comum entre pessoas transfemininas que essa competição de passabilidade, esse discurso de que quem é passável é superior, esse desejo de ser passável que, não raro, chega a níveis de obsessão mesmo. Já cansei de ver meninas trans passáveis que sustentam uma atitude constante de desdém e superioridade diante das outras, por se acharem no ápice da possibilidade existencial de uma mulher trans, se gabando por poderem, em encontros amorosos, enganar os caras que são cis, chegando a ponto de dizer que não vai dar a ppk porque estão menstruadas, por exemplo. É o que mais tem.

No fim, fico com a impressão de que a menina está mais sendo malhada porque expôs que o rei está nu que por efetivamente ter dito algo escroto.

Minha pergunta: quantas pessoas criticando essa menina já não disseram que “fulana de cara de cavalo”, que “fulana é linda, bem passavelzinha”? O quanto essa reação de repúdio massivo vem mais como uma forma inconsciente de mascarar sua própria adesão tácita a esses discursos que como um desejo de, de fato, combatê-lo?

Será que a gente não podia usar a oportunidade que essa polêmica trouxe pra falar mais sobre o quanto a ideia de passabilidade nos é nefasta e menos sobre a menina que soltou algo que habita a cabeça de muitas entre nós?

Sem defender a menina, nem a conheço e não estou com isso querendo implicar que estão sentindo inveja dela, mas,

Quando é que vai ser normal entre nós não sentir inveja de mulheres trans passáveis?

Ter a passabilidade como objetivo final de uma transição, pensar em passabilidade como um predicado, uma qualidade positiva, algo a ser exaltado ou perseguido, tudo isso não deixa de ecoar a velha noção de que o corpo trans é, de alguma forma, patológico.

Me parece muito pouco discutido entre as pessoas trans – principalmente mulheres trans e travesti, que posso falar com mais propriedade por ser meu grupo – o quanto querer ser passável, ter inveja velada de meninas passáveis, escarnecer meninas não passáveis ou se achar grandes merda por ser passável são todos sentimentos que reforçam a ideia de que o corpo trans é de algum modo incompleto, débil, carente, falho, deficiente de algo. Essa noção de beleza estética é informada por um eixo de completude e perfeição que tem, em uma ponta, a mulher trans idêntica à mulher cis da mais padrão e, na outra, a mulher trans “que parece homem”, a “machuda”, a “cara de cavalo/pedreiro”.

Nessa perspectiva, o corpo trans conservaria seu caráter de abjeto a não ser quando isso fosse disfarçado emulando traços corporais típicos de uma pessoa cis e, não só isso, mas traços típicos de pessoas cis já dentro do padrão de beleza cis e branco. Se nosso corpo trans não é doente, se transgeneridade não é em si mesma uma patologia ou uma disfunção, por que então nossos corpos precisam serem imitações dos corpos cis para serem considerados bonitos? Por que a gente se maltrata tanto por dentro se olhando no espelho, manipulando fotografias ou simplesmente não as tirando só porque nosso corpo expõe o óbvio sobre nós – que somos pessoas trans?

Meu objetivo com esse texto não é recriminar, mas convidar a uma reflexão mais profunda. Acredito que nós mesmas somos quem, coletivamente, deve construir esse senso de valor próprio e completude sendo trans do começo ao fim, desde o nível psicológico e subjetivo até o nível corporal e estético. É discursiva a questão aqui. Tem a ver com as anuência tácitas que vamos concedendo à cisnormatividade quando nos permitimos nos identificar com padrões estéticos nos quais nossos corpos não cabem.

Do contrário, ficamos sempre nesse atoleiro de atacar figuras públicas que, incautas, verbalizaram em alto e bom som sentimentos e noções compartilhadas por todos em algum nível

Por Paulo Ferreira.

Imagem destacada: Pablo Picasso – Garota em frente ao espelho / via Bicha da Justiça.


Publicado

em

por