Quatro anos após uma das primeiras tentativas de explicar e conceituar os termos cissexismo e cisgênero, tivemos várias conquistas, mas também novos desafios.
Em novembro de 2011, escrevi meu primeiro texto tentando explicar e conceituar o que é cissexismo e a categoria cisgênero (no Brasil). Naquela época, eu tinha a intenção de pura e simplesmente explicar do que se tratavam os termos. Não imaginava que, em tão pouco tempo, este pequeno blogue pudesse influenciar vários segmentos do feminismo e da esquerda em si. Acreditávamos que sim, eventualmente estaríamos discutindo sobre cisgeneridade fora dos ambientes da internet, mas que isso demoraria bastante tempo, até porque quem está familiarizado com linguística sabe das dificuldades de se introduzir novas palavras e conceitos na linguagem corrente e, nesse caso, política.
Um ano depois, em 2012, após algumas (muitas) discussões, escrevi um novo texto tentando melhorar e me corrigir em alguns pontos (e já está na hora de escrever um novo texto, por sinal). Esse texto foi e ainda é usado como referência em vários espaços políticos e inclusive acadêmicos para se discutir cisgeneridade e cissexismo. Em pouco tempo, somaram-se a mim duas pessoas extremamente brilhantes que contribuíram imensamente para aprofundar o debate sobre cisgeneridade: Viviane V., que se encarregou de dilapidar e disseminar o conceito na academia, e Bia Bagagli que, utilizando a linguística como ferramenta, trabalhou para lançar questionamentos absolutamente pertinentes sobre o uso e a conceituação dos termos. Só posso ser grata a essas duas pessoas maravilhosas por terem encarado esse projeto e não terem desistido, como eu quis desistir várias vezes.
Mas antes que esse texto se torne excessivamente emocional (se é que isso seria ruim) (e considerando que toda nostalgia é sempre imbuída de emoção), gostaria de dizer que sinto-me muito fortalecida por hoje o termo estar na linguagem corrente de parlamentares de esquerda e até mesmo de pessoas famosas que compreenderam a necessidade política de se nomear uma opressão estrutural procurando se distinguir das “fobias” da sigla LGBT, para construir um campo de estudos focado na problematização da ostracização das identidades trans* enquanto o Outro, sempre determinado em função das pessoas consideradas normais e saudáveis, ou seja, as pessoas cis.
Decerto, tivemos muitas dificuldades, a começar pelo ônus de “despertar” a transfobia de setores feministas raivosos inconformados com a emancipação trans* e a subsequente perda de seus próprios privilégios e zona de conforto cisgênera. Ainda hoje as feministas radicais transfóbicas, inconformadas com nossa luta, tentam desqualificar o movimento trans* e feminista através das acusações mais esdrúxulas que com o passar do tempo (talvez pela falta de sucesso em sua empreitada) vão se tornando cada vez mais violentas. Contudo, o fato de que desde 2013 temos um Seminário Internacional que abordou Transfeminismo (Desfazendo Gênero), um ST específico sobre Transfeminismo no maior seminário feminista do Brasil, o Fazendo Gênero, assim como uma mesa específica sobre Transfeminismo no último Enlaçando Sexualidades, e mais ainda, um ST específico sobre cisgeneridade no próximo Desfazendo Gênero (agora em setembro), revela que apesar das várias disputas – comum na área acadêmica – conseguimos espaço para dialogar enquanto sujeitos trans* sobre as questões trans*, produzindo conhecimento juntamente com xs colegas pesquisadorxs do campo que, em sua grande maioria, nos apoiou (mesmo que não em um primeiro momento).
A força política de se colocar quem são as pessoas cisgêneras, como venho postulando há algum tempo, é a de marcar a identidade das pessoas trans* como tão “normais” quanto, ou tão artificiais quanto a das pessoas cis. Ainda tendemos a considerar a expressão de gênero das pessoas trans* como menos reais, menos válidas e mais artificiais do que a das pessoas cis. Isso é fruto do cissexismo estruturado na sociedade que estabelece a verdade dos sexos (e consequentemente a dos gêneros) no dimorfismo dos corpos que, como sabemos, é uma convenção/invenção social recente. Há um amplo campo de estudos da antropologia e da história destinado a demonstrar a fragilidade de se pensar em dois sexos como verdadeiros e naturais. As pessoas trans* desafiam a lógica binarista e natural dos corpos e dos gêneros, mostrando que as identidades de gênero, cis ou trans*, são muito mais complexas daquilo que eu costumo chamar de “tríade cisgênera” (ou santíssima trindade cisgênera, como preferirem) homem/pênis/masculinidade e mulher/vagina/feminilidade.
Por fim, gostaria de encerrar dizendo que ainda temos muito trabalho pela frente. Ainda há uma infinidade disputas a serem enfrentadas, e sobretudo, precisamos cada vez mais nos sofisticar em relação à conceituação dos termos. Não podemos nos dar ao luxo de contentar com o pouco que temos, pois é apenas através do nosso próprio educar, no sentido amplo da palavra, que conseguiremos levar o debate sobre cisgeneridade a um novo patamar. Precisamos da teoria como ferramenta para afinar nossos ideais e assim melhorar tanto a argumentação, quanto nossa militância. A educação, as leituras e os debates são essenciais às feministas que desejam (e ousam, como nós) criar um projeto político ético e coerente com os vários vetores que atingem todas as mulheres; econômicos, raciais, gênero, sexualidade, etc. Ainda estamos longe de chegar lá, mas nunca deixaremos de tentar, com erros e acertos, pois se nós não fizermos ninguém o fará por nós.