Que cem flores insurjam: por uma pedagogia libertária

Por Inaê Diana Ashokasundari Shravya.

A alegação de muitos neoconservadores de que educação sexual implica pedofilia é muito mais uma cortina de fumaça do que a real preocupação deles. O que a educação sexual possibilitaria, é criar condições de enunciação para as crianças produzirem saberes sobre si mesmas e relatar o que lhes ocorre. A criança, ela mesma, é um sujeito político. “O sistema educativo é o dispositivo específico que produz a criança, através duma operação política singular: a dessexualização do corpo infantil e a desqualificação de seus afetos”[1]. Não se nasce criança, torna-se.

“A infância não é um estado pré-político senão, pelo contrário, um momento no qual os aparatos biopolíticos funcionam de maneira mais despótica e silenciosa sobre o corpo”. O que os neoconservadores almejam ao proibir que educação sexual seja lecionada nas escolas, é encobertar situações de violência física, psicológica, como estupro e a própria pedofilia, que ocorrem em sua maioria dentro do ambiente familiar. Não seria nenhum absurdo dizer que a família burguesa, esse modelo que nos é imposto como modelo único de estabelecer relações de parentesco, tem como parte constituinte sua o estupro e o abuso sexual[2]. Quando falo que uma educação sexual criaria condições de enunciação para que essas crianças produzissem saber sobre si mesmas e relatassem o que lhes ocorre, falo especificamente da possibilidade de essas crianças não só denunciar casos de violência, como também pensar meios de confrontar situações de violência. A educação sexual, neste caso, implicaria na realização da maioridade – no sentido kantiano – pedagógica da criança. Claro, uma educação sexual que não levasse em conta as dissidências sexual e de gênero não seria útil, dado que tenderia à cisheteronormatividade, sendo que é exatamente esta que possibilita situações de violência de gênero. O ambiente familiar, salvo raríssimas exceções, costuma ser um ambiente absolutamente hostil para crianças trans/queer.

Poderíamos seguir o que indica Alfredo Veiga-Neto e considerar que “o que (…) parece urgente, então, é ampliarmos nossos conhecimentos acerca dos processos identitários que não apenas criam novos símbolos —a partir das representações que se fazem sobre os tempos vividos pelos corpos—, mas que também re-significam outros mais antigos, formando novos eixos em torno dos quais mudam, dia-a-dia, os sentimentos de pertença. São esses sentimentos de pertença que podem conferir, a cada pessoa, uma posição de maior ou menor presença e atuação na sociedade, capacitando-a para o exercício de uma cidadania mais (ou menos) significativa” [3]. Ou seja, pensar uma pedagogia histórico-crítica que não abordasse o corpo como um dado natural, mas como produto social, histórico, e inclusive econômico.

Vale lembrar que os neoconservadores agem com cumplicidade, e são as instituições (como a família, a escola, o hospital) suas cúmplices. Muitas donas de casa têm de lidar com um mutismo seletivo e acabam acobertando situações de violência voltadas não só a suas filhas, como também a seus filhos, por parte de seus maridos. Se essa mulher denuncia o seu marido, ela vai se expôr a mais riscos do que ela estaria exposta caso não denunciasse. Em ambos os casos, tanto para ela, quanto para as crianças, o homicídio – quando não o suicídio, e aqui cabe pensá-lo politicamente – espreita suas vidas. Muitas das vezes suas denúncias são tratadas com desdém, assim como ocorre em denúncias de agressões sofridas por mulheres no ambiente doméstico. É constrangedor o que ocorre com elas no momento da denúncia, o que cria condições para a intensificação de suas vulnerabilidades. Ou seja, a ambientação do espaço familiar é politicamente pensado para favorecer o estuprador, o pedófilo que violenta sexualmente uma criança.

A educação sexual acabaria com a família? Sim, uai. Por que não?! Acabaria com a família exatamente porque a família é constituída por violência física e psicológica. Perceba, quando falo de família eu me refiro a um tipo específico de estabelecer relação de parentesco vinculado à burguesia, e não a qualquer forma de estabelecer uma relação de parentesco. A forma mesma que o amor assume dentro da família é a da subalternidade, da docilidade, da aceitação incondicional de tudo que lhe é imposto. É o que se designa comumente de “amor romântico”. Há tantas formas de amar, de amar quanto transbordamento de si e realização de si mesma enquanto outra. Esse tipo de amar, que nós anarquistas designamos “amor livre” – de uma liberdade que se faz no seu próprio exercício, de maneira positiva e potente -, é a que causa tanta aversão aos neoconservadores, à família e sua constituição tirânica. O amor livre se confecciona na amizade e no companheirismo, algo que as rapinas neoconservadoras desconhecem.

Outra alegação dos neoconservadores, é a de que a educação sexual faria propaganda de uma tal “ideologia de gênero”. A única ideologia de gênero que existe é a da cisgeneridade compulsória, que, acompanhada de falácia naturalista, apresenta a heterossexualidade como verdade da natureza. Karl Mannheim, sociólogo húngaro, diz que a ideologia é o conjunto das concepções, idéias, representações, teorias, que se orientam para a estabilização, ou legitimação, ou reprodução, da ordem estabelecida. É com base nessa definição que eu falo de “ideologia” aqui. Assim, se considerarmos a cisgeneridade como estatização do biológico, e que é apresentada pelas instituições como “corpo normal”, podemos sim dizer que há uma ideologia de gênero, e esta beneficia única e exclusivamente a cisgeneridade, e não a transgeneridade, como supõem os neoconservadores. Uma abordagem positiva da transgeneridade resultaria na des-hierarquização e descentralização sexuais. O corpo já não seria um corpo-feito-para, do qual a minoria heterossexual branca se beneficia e extrai mais-valia, mas um corpo aberto, uma obra em aberto, um corpo a se fazer.

“A instrução deve ser igual em todos os graus para todos; por conseguinte, deve ser integral, quer dizer, deve preparar as crianças de ambos os sexos tanto para a vida intelectual como a vida do trabalho, visando a que todos possam chegar a ser pessoas completas.” [4]

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[1] PRECIADO, Paul B.. Terror Anal. Imprensa Marginal. 2019.

[2] https://oglobo.globo.com/…/ministerio-dos-direitos-humanos-…

[3] VEIGA-NETO, Alfredo. As idades do corpo: (material)idades, (divers)idades, (corporal)idades, (ident)idades, …*. Na íntegra: http://www.lite.fe.unicamp.br/cursos/nt/ta5.12.htm

[4] BAKUNIN, Mikhail. A instrução integral. Editora Imaginário. 2003.


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