O transfeminismo é uma corrente feminista que se pauta a discutir a questão das pessoas transexuais, travestis e transgêneras – iremos usar “pessoas trans” para simplificar a escrita. Isto implica partir de um lugar específico, já que toda proposição transfeminista só faz sentido a partir do momento em que reconhecemos a identidade de gênero das pessoas trans como legítima. Falamos de identidade num sentido que é ao mesmo tempo subjetivo e político.
Compreendemos as identidades trans como plurais e múltiplas. Não há forma pré-estabelecida para ser travesti ou transexual, entendemos que as identidades são construções sócio históricas: elas se constituem num espaço entre a memória socialmente consolidada e a atualização deste memória no acontecimento de uma subjetivação singular. Não há, portanto, apenas repetição quando falamos de identidade: somos interpelados a sermos homens e mulheres a partir de um imaginário pré-estabelecido, mas há margem para o advento do inesperado, já que esta interpelação não funciona enquanto um destino absoluto, ela funciona pela falha e fluidez, já que somos instados também como sujeitos de nossa própria história rumo ao que ainda não foi inventado, e não como meramente frutos pré-determinados dela.
Defendemos a autonomia das pessoas trans sobre seus próprios corpos e identidades. Entendemos que são as próprias pessoas que devem gerir as possibilidades de seus corpos e que portanto não existe jeito “certo” ou “errado” no que tange expressar uma identidade de gênero. Neste sentido, vemos como certas críticas a um suposto fato de pessoas trans estarem “reforçando os estereótipos de gênero” acabam sendo imprecisas e equivocadas. Primeiro, entendemos que as pessoas trans não devem ser julgadas e culpabilizadas por uma questão estrutural, já que muitas vezes, se encaixar em certos padrões é questão de sobrevivência para muitas e muitos de nós. O ônus para a transformação social que desejamos nunca deve recair nos indivíduos. Segundo, entendemos que não existe “reforço” e “quebra” de estereótipos de gênero de forma absoluta: a partir da repetição do mesmo surge a possibilidade do novo; da mesma forma que a ruptura não existe apartada do estado anterior que a precedeu. Acreditamos na luta por um mundo em que as pessoas não sejam constrangidas em decorrência de normas de gênero (que também são normas estéticas) ao mesmo tempo em que defendemos que toda forma de existir enquanto trans é uma forma de resistência e que toda forma de existência enquanto trans é legítima.
O que haveria de comum entre as identidades trans se refere às múltiplas formas de como os sujeitos se encontram em desacordo com as expectativas em relação ao gênero originalmente designado ao nascimento e vivenciam tais experiências. Tais expectativas se orientam através de normas cisgêneras.
Ao afirmarmos isto percebemos o surgimento de um termo talvez inusitado: cisgênero e tantos outros derivados, como cisnormatividade, cissexismo e cisgeneridade compulsória. Cisgênero é o antônimo de transgênero, indica portanto um alinhamento subjetivo em relação às normas e expectativas quanto ao gênero que foi designado ao nascer.
A partir desta definição, surgem diversas polêmicas em torno da teoria feminista. Muitas pessoas acabam por criticar o uso do termo cisgênero pois alegam que seu uso poderia naturalizar as margens que separam os sujeitos que estão do lado de “cá” e do lado de “lá”. Contudo, para o transfeminismo, o conceito de cisgeneridade é fundamental para se pensar a realidade dos sujeitos trans de uma forma não estigmatizante.
Por isso é tão importante explicitar, pela teoria feminista, os usos que fazemos dos conceitos. Entendemos os conceitos de cisgeneridade e transgeneridade não como entidades opostas e essencialmente excludentes: ao contrário, compreendemos que uma coisa depende da outra. A alteridade é constitutiva da identidade: alguma coisa é algo “em si” tão somente na relação com o que não é, ou seja, através da própria diferença.
Neste aspecto apontamos como soa não apenas impreciso, mas bastante equivocado, as designações como “biológicas”, “de verdade” ou de “nascença” para qualificar as pessoas que não são trans. O transfeminismo critica profundamente os discursos que deslegitimam as identidades das pessoas trans com base em discursos cissexistas, que apelam frequentemente para uma noção equivocada de biologia. A biologia não pode falar sobre como escolhemos viver nossas vidas, tampouco dizer uma verdade absoluta e escondida de nossas identidades.
Trocando em miúdos: as inconformidades em relação às expectativas quanto ao gênero são experiências que dizem respeito também às pessoas cis, assim como as conformidades em relação a estas expectativas também dizem respeito às pessoas trans. Discutir o que afeta as pessoas trans também é assunto para afetar as pessoas cis. Aliás, queremos que as pessoas cis sejam aliadas em nossa luta contra a transfobia. Queremos, portanto, que as pessoas cis não saiam “ilesas” ao transfeminismo. Acredito na possibilidade da empatia: o sujeito é capaz de compreender acerca de realidade que ele não se afeta diretamente, ao se colocar na posição do outro. Estar na própria posição do “mesmo” requer a necessidade ética da escuta do outro para a construção da consciência de si se dando a partir deste outro.
Não há, portanto, conformidade e inconformidade em relação ao gênero de forma absoluta, elas são necessariamente relativas: não há só repetição nas práticas de subjetivação quanto ao gênero, mas não há nenhuma criação absolutamente deslocada de alguma memória anterior. Esta é uma forma de pensar dialeticamente que irá nos afastar de qualquer tipo de essencialismo quanto ao uso dos conceitos de cisgeneridade e transgeneridade: isto se dá num nível teórico que é também um nível que orienta a nossa forma de fazer política.
Falar de identidades é necessário como forma de mobilizar certas reivindicações políticas que concernem determinado grupo: aprovação da lei de identidade de gênero, João W. Nery, e a efetivação dos decretos de nome social são reivindicações específicas das pessoas trans, assim como o uso adequado dos banheiros pelas pessoas trans em instituições e espaços públicos. Contudo, questões mais amplas que concernem o acesso à educação, a saúde, a moradia e ao trabalho também ganham contornos específicos na forma como se pautam enquanto reivindicações políticas, já que existem vulnerabilidades específicas decorrentes da transfobia que impedem o pleno gozo destes direitos pelas pessoas trans em nossa sociedade.
Os movimentos sociais apontam como a definição de um sujeito universal de direitos se torna incompleta para pensar na reivindicação de direitos fundamentais por aqueles que fazem parte de determinadas minorias. Para pessoas negras, mulheres, trabalhadores e aquelas pertencentes à sigla LGBT, não basta lutar por direitos em abstrato, já que é preciso levar em consideração a diferença que as marcam em relação ao hegemônico.
Por isso o transfeminismo necessariamente pauta a denúncia contra a transfobia – entendemos a transfobia como um vetor específico de opressão que marginaliza e estigmatiza os sujeitos trans em nossa sociedade e tem implicações diretas em todos os âmbitos da vida de uma pessoa trans. O transfeminismo, desta forma, irá denunciar qualquer tipo de discurso que culpabilize a vítima de transfobia. É muito recorrente ouvirmos que pessoas trans “escolhem” ser trans e por isso seriam responsáveis pelas represálias que sofrem em decorrência de se identificarem em desacordo com as expectativas cisgêneras. Percebam, contudo, que o próprio ato de pressupor que uma pessoa não deva ser trans para evitar sofrer é em si mesmo algo profundamente transfóbico: se o mundo não permitir com que vidas trans sejam viáveis, não estaremos ainda livres!
Entendemos que a transfobia se manifesta desde casos de violência explícitos até os mais sutis ou simbólicos, sendo que estes últimos são a base que sustenta o primeiro. De acordo com dados da organização Transgender Europe, TGEU, o Brasil é o país em que mais se mata pessoas trans no mundo. Por trás de todos esses assassinatos, há um discurso transfóbico que legitima tais atos e se manifesta em um discurso que estigmatiza e desumaniza as pessoas trans. Não reconhecer a identidade de gênero das pessoas trans, neste aspecto, é uma forma de desumanizá-las e o primeiro passo que orienta práticas de extermínio desta população.
O transfeminismo, por reconhecer a legitimidade das identidades trans, irá reatualizar o entendimento de outras questões, como a orientação sexual. É recorrente dizermos que identidade de gênero é uma coisa e orientação sexual é outra; contudo, ainda vemos as pessoas não compreenderem a sexualidade quando o sujeito que deseja ou que é desejado é trans. Neste sentido, afirmamos que tanto a homossexualidade, a bissexualidade e a heterossexualidade não são prerrogativas das pessoas cisgêneras.
Não é pouca coisa a pauta transfeminista: reconhecer a legitimidade de nossas identidades implica a crítica de todo um sistema social que naturaliza que as únicas realidades identitárias possíveis e inteligíveis sejam a das pessoas cisgêneras. O transfeminismo luta para a construção de um mundo em que as vidas trans sejam passíveis de serem vividas sem nenhuma forma de estigmatização e marginalização.
Para ler mais textos de introdução ao transfeminismo: