Reflexões em crise disfórica

Texto de Winnie Minucz.

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Há um “Cistema” que põe minha vida em risco a partir do momento em que sou lida tanto com gênero feminino, quanto com masculino. Estar segura neste “Cistema”, para mim, cuja identidade é FEMININA, implica passar por uma série de alterações corporais (body modification) que me darão passabilidade feminina, ou seja, tomar hormônios, me submeter a determinadas cirurgias, aumentar seios, realocar gorduras, redesignar o genital, etc. modificações que irão garantir que meu corpo seja lido apenas como feminino.

Do contrário, como já disse, corro risco de vida, estou com possibilidades profissionais restritas a subempregos, exilada de vida social habitual, e condenada à marginalização social frente a um Estado de coisas, que é incapaz de reconhecer minha identidade travesti, inclusive burocraticamente falando.

Daí, toda a transição hormonal, cirúrgica, vocal, corporal, etc. Se torna uma demanda urgente e fundamental para minha sobrevivência enquanto ser social que sou (se fosse rica já estaria linda e resolvida na minha Torre de Marfim, isolada da desgraça que é esse mundo).

A sociedade cisgênera exige de meu corpo, uma leitura binária e cis-passável (tbm conhecido como “ela-nem-parece-homi”).

Mas, se de um lado, há uma sociedade que genocida a população trans, justamente por exigir o “milagre da transmutação dos gêneros” que citei acima, por outro lado, eu percebo uma “elite acadêmica teórica” (ora cis, ora trans), que define os corpos transgêneros passáveis como corpos submissos ao “Cistema”. Pra essa elitezinha deslumbrada com seus privilégios acadêmicos e discursivos, a trans passável é “reprodutora do discurso opressor”, é uma coitada que está se rendendo a sexualização e ao estereótipo porque ela não atingiu a iluminação, por causa da evasão escolar, e está longe das discussões de gênero, porque “é difícil falar com ela”, “a gente não consegue atingi-la, com nossa linguagem”-super-cult… “ela não consegue estabelecer uma narrativa pra ter voz”…

E lá vamos nós… privilegiadamente distantes demais da realidade fora dos muros da academia… e encaixotando os corpos conforme nossos próprios recortes e privilégios discursivos… e minha cabeça só consegue rodear em volta do meu corpo que, ou é “mal-acabado/inadequado/errático”, ou é “reprodutor-de-padrão-opressor/submisso/omisso/conivente”… não estou vendo lugar pra ser livre.


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