Respondendo à Djamila Ribeiro: Eu também sou uma mulher

Ontem me deparei com um texto de Djamila Ribeiro para a Folha que afirmava, entre outras coisas, que o termo “pessoas que menstruam” seria um novo universalizante prejudicial à categoria mulher. Ao longo de 9 parágrafos, o texto evoca feministas negras para corroborar um espantalho: o de que o termo “pessoas que menstruam” existiria para substituir o termo mulheres. Djamila confunde alhos com bugalhos e se incomoda com um fenômeno inexistente: ninguém defende que “mulheres” sejam substituídas por “pessoas que menstruam” ou “pessoas que gestam”. Nesse texto tentarei explicar a importância de outras categorias de identificação e como o termo “pessoas” tem sido mobilizado para humanizar e não desumanizar categorias de pessoas que são cotidianamente desumanizadas.

Em primeiro lugar, é preciso lembrar que o transfeminismo defende a coalizão entre o feminismo e o movimento trans, trabalhando em conjunto para a emancipação de todas as mulheres. Em seu famoso texto “Manifesto Transfeminista”, Emi Koyama defende que o movimento trans não busca suplantar o movimento feminista através de suas demandas, mas, ao contrário, procura mostrar que a luta contra a transfobia e pela emancipação das pessoas trans beneficia a luta das mulheres cis. Inúmeras pautas atravessam as demandas do movimento trans e que lutam contra o mesmo machismo que mulheres cis sofrem na sociedade. O mesmo patriarcado que oprime mulheres cis opera para vitimar pessoas trans. O texto da Djamila, ao revelar um incômodo com algo inexistente, solapa os esforços do transfeminismo e do movimento trans em sua ação conjunta de coalização e solidariedade. É importante lembrar que no Reino Unido (e no Brasil), as feministas radicais transfóbicas, comumente chamadas de “TERFs”, trabalham para retirar direitos das pessoas trans em políticas públicas e em leis que protegem minorias. O termo “gênero” é repetidamente atacado em detrimento do termo “sexo” para se referir a mulheres, tal qual os fundamentalistas religiosos fazem no Brasil. Onde estava Djamila quando esses fundamentalistas encerravam as mulheres ao termo sexo como se – justamente o que o texto de Djamila critica – mulheres fossem reduzidas às suas funções biológicas? Porque o termo “pessoas” se traduz em um problema quando o termo “gênero” está sob ataque por parte das TERFs e dos fundamentalistas religiosos?

Em segundo lugar, o termo “pessoas que menstruam” não surge para substituir o termo mulheres e nem para reduzi-las à biologia simplesmente pelo fato que os dois termos não são mutualmente excludentes e nem intercambiáveis. Se Djamila se sentir mais confortável, não há por que não falar “mulheres e/ou pessoas que menstruam”. A questão aqui é que nem todas as pessoas que menstruam são mulheres. O termo também não exclui socialmente aquelas pessoas que não menstruam simplesmente pelo fato de que é um descritivo. Ora, pessoas que menstruam/com útero não inclui mulheres que não menstruam/sem útero porque não busca incluir, não é um universalizante para mulheres, trata-se de um descritivo para uma demografia específica de pessoas. É a lógica do diagrama de Venn. Não há necessidade de incluir mulheres sem útero se eu for falar de gestação, por exemplo. Nesse caso, inclusive, mulheres trans são excluídas da demografia simplesmente porque não têm útero, mas essa não é uma exclusão social, é simplesmente um fato. Como eu disse, nem todas as pessoas que menstruam são mulheres cis. Se eu vou falar de menstruação especificamente, é natural que eu me refira a todas aquelas pessoas que menstruam, além das mulheres cis. Nem todos os homens trans têm útero, por exemplo (pois fazem histerectomia como parte do processo de confirmação de gênero). Então não seria o caso de falar em “mulheres (cis) e homens trans” nessa demografia. Daí o termo “pessoas com útero”. Djamila também comenta que a categoria de homens estaria intocável nessa discussão, mas isso é simplesmente um equívoco. Seja por miopia ou ignorância, Djamila parece não ter percebido no seu incômodo que o termo “pessoas com pênis/próstata” também circula com o intuito de se referir a mulheres trans e homens cis. Mas, de novo, não são todas as mulheres trans que têm pênis e/ou próstata, pois há aquelas que fizeram cirurgia de confirmação de gênero. Daí o termo “pessoas com pênis/próstata”. Além disso, o termo pessoas tem sido mobilizado para humanizar categorias de pessoas que têm sido historicamente apagadas, como pessoas negras, pessoas trans, pessoas com deficiência etc.

As pessoas trans também não estão demandando que haja essa substituição quando falamos de dados de violência. Djamila, em seu texto, menciona violência contra as mulheres corretamente, mas não entendo qual seria o conflito. Ninguém está exigindo que passemos a falar “violência contra pessoas que menstruam”. Isso é simplesmente inexistente. O transfeminismo continua enfatizando que o Brasil é quinto país que mais mata mulheres. Utilizamos o termo mulheres quando se trata de fenômenos que envolve (nesse caso) violência de gênero. Tampouco defendemos substituir o termo “mulheres” quando falamos em políticas públicas que envolvem majoritariamente mulheres cis. Sabemos da importância do termo e defendemos sua particularização quando nos referimos a dados específicos: mulheres negras sofrem mais violência do que as brancas, por exemplo. Mulheres trans e travestis particularmente sofrem violência física/assassinato no exercício do trabalho sexual. A interseccionalidade que Djamila traz para justificar sua posição é a mesma interseccionalidade que procura evidenciar as diferenças entre as mulheres, isso inclui também entender que nem todos os corpos com útero, menstruação e funções biológicas socialmente atribuídas ao feminino se identificam como mulheres.

Isso leva ao terceiro ponto: Djamila cita Simone de Beauvoir, mas esquece de toda contribuição feminista que veio depois dela. Monique Wittig postulou que as lésbicas não são mulheres. A disputa pelo que se entende como mulher não é nova e não diz respeito somente às mulheres cis heterossexuais. O mesmo se dá com os estudos cuir e trans, que trazem à tona novas formas de identificação e de se pensar no mundo. Existem formas de ser e de se viver que fogem à identidade de mulher cis hetero e que não são facilmente apreendidas pelo Outro. As pessoas trans não binárias são um exemplo da dificuldade que é viver num mundo fortemente dividido por duas categorias de gênero: homens e mulheres. O feminismo só tem a ganhar com a crítica às rígidas categorias de gênero que, inclusive, inclui criticar o essencialismo biológico que confina homens aos corpos com pênis e próstata e mulheres a corpos com vagina e útero. O transfeminismo critica esse essencialismo e busca ampliar o leque das subjetividades ao dar voz àquelas pessoas que não encontram guarida no binário de gênero. Referenciar isso não é apagar a categoria mulher, mas sim trazer à tona toda uma construção machista de gênero que impõe certas características a certos corpos.

Por fim, Djamila está certa: nós mulheres não somos apenas pessoas que menstruam, mas ao criar um espantalho seu texto é prejudicial ao movimento trans que luta por inclusão e por outra visão de mundo que não seja uma fortemente marcada pelas normas que orientam o gênero e por uma visão dimórfica dos corpos. É sempre bom lembrar que nem a biologia tem o monopólio do binarismo ao passo que a intersexualidade não é tão incomum quanto parece. A produção de corpos cisgêneros é também uma forma de se apagar as múltiplas formas de ser e de vivenciar o gênero para além de uma narrativa que confina as pessoas a duas categorias supostamente imutáveis. A categoria mulher continua existindo e sendo útil, mas não é a única para se pensar gênero.

Eu (também) sou uma mulher.


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