Então pessoal, tive um ideia de post para este mês. Vou recuperar e copiar aqui textos que publiquei durante este ano (e um do final de 2014) no meu perfil pessoal do facebook. Alguns textos vão parecer um tanto lacunares, já que se tratam de comentários sobre algumas questões que estavam sendo debatidas em determinado contexto. Tentarei na medida situar o contexto de resposta que alguns textos se referem. Mas sobretudo, acho relevante publicar estes textos pois eles tratam de questões transfeministas que certamente vão se repetir: como a questão do gênero, termo cisgênero, a expressão de gênero das pessoas trans e cis, as diversas manifestações do cissexismo e transfobia dentro do feminismo e movimento gay, etc.
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Em resposta à repercussão do texto “O (cis)gênero não existe”
Cisgênero não é um conceito, é uma palavra. Palavras têm inúmeros sentidos, não enquanto conceito (unívoco). Cisgênero não é um conceito pra designar pessoas cujas identidades seriam absolutamente congruentes com o desígnio de gênero ao nascimento. Cisgênero é uma palavra que irrompe do sistema da língua pra significar o que não é transgênero. É uma diferença significativa.
De fato, quando falamos, achamos que estamos falando através de conceitos porque achamos que as nossas palavras são mais exatas o possível pra expressar algum pensamento ou realidade. A questão era que estão falando que cisgênero era um conceito, e conceitos tem definições inequívocas. E uma palavra é irremediavelmente polissêmica. Então a questão é: qual o sentido de cisgênero que eu emprego, que eu julgo relevante politicamente acionar? Se formos pra fazer um conceito de cisgeneridade, certamente eu vou fazer pelo lado político da questão. Acho que meus textos sempre vão nessa direção.
Então, vejamos o que cisgênero é ou não é no meu “conceito”:
1) Cisgênero não se refere a alguma substância. Não é possível identificar uma biologia cisgênera, tampouco um diagnóstico de cisgeneridade. Você não pode encontrar um “cisgênero” empiricamente. O transfeminismo luta para que o diagnóstico de gênero não exista mais. Logo, cisgênero não é uma categoria nosológica como transgênero é no discurso médico.
2) Cisgênero se define em oposição ao termo transgênero. Isso não significa que cisgênero e transgênero seja dicotomias estanques. Mas acontece que a língua funciona através de pares opositivos: como masculino/feminino; negro/branco; etc. Se entendemos ser impossível que uma pessoa se encaixe de forma absoluta entre o desígnio e a identidade (posição cis) diremos igualmente ser impossível um desacordo absoluto entre o desígnio e a identidade (posição trans). Fato esse não fez com que achemos que pessoas trans/transgeneridade não existissem; da mesma forma, não há porque, nesta mesma medida, dizer que pessoas cis/cisgeneridade não existem.
2015 chega e ainda tem página feminista dizendo que “transexualidade não existe”. Engraçado transexualidade não existir e mesmo assim a expectativa de vida média de uma travesti ser de 30 anos e 90% delas serem prostitutas (grande parte por falta de outras oportunidades de emprego). Engraçado ser enunciável que “transexualidade não existe”. Será que seria igualmente enunciável dizer que “raça não existe”, “classe não existe”,… quais redes de paráfrase seriam possíveis? (“x não existe” sendo x=determinada minoria ou grupo social). Transexualidade pode não existir enquanto uma ontologia médica-diagnóstica. Mas transexualidade – ou melhor, transgeneridade – continua pesando materialmente na vida de muitas pessoas. Pesando nas exclusões, nos assassinatos transfóbicos, nos impedimentos, nas ojerizas, nos cisseximos cotidianos.
Você pode ter a impressão que pessoas trans não existam. Deve ser fácil tomar como um dado empírico de você nem ao menos ver uma travesti lavando a sua cueca ou calcinha e tomar isso como argumento que corrobore sua hipótese de “transexualidade não existe” (afinal eu nunca vi uma travesti nem um elevador de serviço vejam só!). A questão é que essas pessoas são tão excluídas que fica super fácil toma-las como inexistentes. Se mata travestis até mesmo pelo discurso.
Fevereiro de 2015
Muito curioso esse texto falar que mulheres trans não “poderiam” se reivindicarem mulheres pq isso não faz sentido dentro da teoria, já que gênero só diz respeito à realidade as pessoas cisgênero. Mas são as mesmas feministas radicais que se revindicam enquanto mulheres para uma necessidade política. O que nos faz concluir: feministas radicais pressupõem que o ~ÚNICO~ “motivo” de uma mulher trans se afirmar mulher trans seria uma forma de “essencialismo barato”, uma “misoginia supérflua”. Não pararam para pensar que mulheres trans precisam TAMBÉM se afirmar como mulheres trans por questões POLÍTICAS? Será que a realidade material de opressão transfóbica não é suficiente para que nossa reivindicação “identitária” – sim, feministas radicais fazem o mesmo quando afirmam que a existência do gênero enquanto opressão é a forma como a “fêmea humana” é socializada como mulher – seja igualmente necessária? Ou seja: feministas radicais “esquecem” que se reivindicar mulher trans é também uma causa política. Sobre visibilidade de pautas políticas. Não se trata de essencialismo. Ao contrário, feministas radicais silenciam nossas questões ao pressuporem que o único motivo de reivindicação da existência de algo que se chama “mulher trans” é fruto de mero individualismo “essencialista”. Isso é liberalismo: pq coloca mulheres trans como meros indivíduos, não como um grupo social que é oprimido e tem reivindicações.
Aliás, outro estereótipo extremamente nocivo que feministas radicais erguem sobre mulheres trans serem aquelas que “reforçam os estereótipos de gênero (mais do que pessoas cis)”. Parece que pessoas cis não aceitam o fato pesado de que as pessoas trans não são as responsáveis pela sua revolução abolicionista de gênero (de que não foram capazes de cumprir).
Em resposta a um texto veiculado no blog “Festival Marginal”
“Como, segundo as rads, o feminismo resolverá pautas básicas de estupro, direitos reprodutivos, aborto, menstruação, mutilação genital feminina, violência obstétrica, vagina, maternidade (gestação), se dentro de um grupo com trans esses temas são Trigger? São, muitas vezes, motivo para desespero, tristeza e/ou nojo para trans?”
R- Olha, como se o feminismo radical trans-excludente estivesse realmente se importando com trigger de pessoas trans… (o que de fato não está). A questão não é essa, duplamente. Discutir questões relacionadas ao corpo não é trigger a priori. Seja pra mulheres cis ou trans. Se alguém não se sentir a vontade de discutir determinados assuntos, seja cis ou trans, ela não é obrigada. Tampouco isso significa silenciamento de quem queira discutir. Muito me surpreende que se ponha como pressuposto que mulheres trans tenham aversão a determinados temas. E essa “aversão” ser tomada como causa de alguma forma de barrar o avanço a estas questões. Não poderia ser mais errado: falar sobre a especificidade de uma questão não é “roubar o foco” de outra. Militância não é luta pela última bolacha do pacote.
A questão, na verdade, é como se tem colocado esse debate. Acreditar que pautas das mulheres transgêneras são irreconciliáveis com as das mulheres cisgêneras é o que está na essência da discordância, não sobre determinados temas que envolvem a corporeidade. A questão é bem outra. É sobre reduzir, em última instância, o gênero ao empírico e não entender que questões ligadas ao corpo só adquirem relevância na medida em que é a categoria do simbólico e do político que as atravessam. É sobre não dar inteligibilidades às existências transgêneras (e aqui, no caso, se põe também a questão de homens trans e pessoas trans que foram designadas ao nascer como mulher e não sejam mulher). É sobre fazer um jogo retórico a favor da exclusão das já excluídas.
“É certo achar que existe privilégio “cis” pelo fato de que as tais não sofrem transfobia? É certo criticar o privilégio “cis” por achar que ter útero, ser mãe e menstruar todo mês não foi um pedido e, sim, uma obrigação?”
R – Sim, se você não sofre transfobia no geral – se vc consegue navegar o mundo sem se dar conta toda hora que cissexismo gera barreiras materiais na sua vida – vc “é” cis e vc recebe privilégios cis. Mesmo entendendo que vivências são diversas. Se vc não sofre transfobia, sim, vc se beneficia de não ser trans e não ter que lidar com certas formas específicas de violência institucional/social. Segundo, ser cis não é ter um corpo que menstrua, ter útero e poder ser mãe. Novamente, ser cis é não ser trans. Ponto. Não é pq uma mulher é cis que ela deixa de ser mulher. Privilégios cis não é vc ter que menstruar, ter filhos ou ter útero. Privilégios cis é privilégio cis: ou seja, privilégios que decorrem unicamente do fato de vc não ser trans e poder navegar o mundo sem se dar conta das barreiras cissexistas – negação de direitos civis específicos (a saúde, ao nome, a emprego, etc).
Em resposta à recorrente polêmica suscitada a cada ano no carnaval acerca dos “homens que se vestem como mulher”
Olha, eu já debati bastante sobre o discussão dos “homens que usam saia” mas gostaria de fazer mais uma observação. Muito se coloca que os tais “homens que usam saia” precisariam desconstruir suas opressões machistas. Tá certo, todo mundo tem que fazer isso. A questão é: todos nós reproduzimos opressão, pq é algo a ser constantemente desconstruído, assim como é necessário que TODAS as pessoas se engajem na luta da opressão INDEPENDENTEMENTE da peça de roupa que utilizem. Ou seja, vejamos um enunciado do tipo “não adianta nada um homem usar saia e continuar sendo machista”. Sim o enunciado é “óbvio”, mas é tão mais óbvio que uma saia não tenha nada a ver com alguém ser “mais ou menos” machista assim como “mais ou menos” empático na luta contra as opressões. O que eu quero dizer é: esse enunciado só faz sentido se vc pressupõe que um homem de saia é alguma coisa a priori apenas por usar saia e, por isso, ele deveria ter determinados comportamentos para que a sua indumentária “faça sentido”. Uma peça de roupa não tem que “adiantar” em direção a determinada coisa, o que adianta é o discurso que tomamos, através de nossas práticas. Precisamos sair desse tipo de oposição, que, em última instância, coloca a figura do homem no centro de nossas discussões, seja na figura de “salvador” e “homenageador das mulheres” seja na figura de “misógino” ou “apropriador e apagador das causas trans”. Uma saia não é um operador que levaria a algum destes polos. Então, aí que entra: uma saia não precisa fazer sentido, ela é apenas uma saia, assim como homens que usam saia não ser o centro e o foco da discussão.
Tem gente dizendo aí que identidades não binárias é “esquizofrenia”, que é “maluquice”. Dizendo também que é coisa de gente privilegiada (pra argumentar que a vivência dessas pessoas são desprezíveis ou simplesmente não existentes).
Olha, eu tenho que dizer: esse rolê tá errado por um monte de motivos. Primeiro, acho que a gente poderia mencionar o capacitismo. Chamar o gênero de certas pessoas de esquizofrenia pra desqualifica-los é capacitismo intersecionado com transfobia. Achar que o gênero de pessoas não binárias “não existe” não difere em nada do discurso que diz que o gênero das pessoas trans que não se identificam como não binárias não existe. Não é por aí que temos que pensar nossa militância. Esquizofrenia é uma condição mental, e pessoas esquizofrênicas merecem igualmente respeito, e esquizofrenia não é um termo que vc designa pra tudo o que vc não gosta ou acha que é besteira.
Segundo: sim, privilégios existem. Tem gente trans* que é sim privilegiada em determinados vetores. O discurso de pessoas não binárias não é algo que é difundido no senso comum. Justamente por isso a não binaridade, no geral, pode estar vinculada ao discurso de pessoas mais privilegiadas em relação a outras pessoas trans por essa questão de acesso a determinados discursos e saberes que não circulam na grande mídia, no senso comum… na Globo. Mas isso não é exclusividade delas. E nem todas as pessoas trans não binárias são iguais, vivenciam as mesmas situações. Nem todas as pessoas trans, sejam binárias ou não, nem todas as mulheres, nem todas as pessoas negras… etc, nem todas as pessoas vivenciam as mesmas e exatas coisas. Incluindo situações que envolvam privilégio e opressão.
E privilégio não é um carma, não é insulto, não é algo a que temos que nos desculpar. Privilégio é algo pra gente perceber que tem pra entendermos o lugar que ocupamos na sociedade a fim de compreendemos um pouco mais ela. Inclusive pra acabar com os privilégios. Mas nós temos que entender o privilégio fora desse discurso sobre disputa moral. Privilégio também não é um bloco monolítico que vc tem ou não: é um todo complexo que possui inúmeras intersecções, a partir de determinado contexto e formação social. Você não compreende uma relação de privilégio simplesmente dizendo “fulano é privilegiado em x, olha como isso implica em y”. X não é um bloco homogêneo e a relação entre X e Y não é mecânica. Só porque determinado saber ou discurso foi mais facilmente estabelecido através de situações de privilégio não significa que esse saber ou discurso sejam ilegítimos. Também não significa que esse discurso ou saber vá ficar circunscrito eternamente num espaço privilegiado.
Então, primeiro aspecto: só o fato de identidades transgêneras E não binárias não serem compreendidas socialmente, isso por si só já faz destas pessoas sofrerem violências neste aspecto. Tudo o que não é sustentado socialmente é passível de ocupar uma posição de abjeção e pessoas tidas como abjetas sofrem violência. Preciso dizer do caso de uma instituição pública que já aceita nome social se recusou a incluir o nome de uma pessoa trans não binária por ser um nome de gênero neutro. Isso não é uma forma de opressão que se deu por uma questão de não binaridade? Precisamos de menos discursos universais e homogêneos quando vamos compreender a sociedade, porque a sociedade é complexa e não é homogênea.
Sim, o acesso à informação é um privilégio. Nós que usamos o facebook como instrumento político temos privilégio por podermos ocupar este espaço e torna-lo um espaço passível de debate. Acesso à internet é privilégio. Ter saúde mental é privilégio. Acessar o discurso feminista, acessar livros, ter tempo disponível pra ler autoras feministas… tudo isso é facilitado pelos privilégios que temos. Poder ler também é um privilégio, ler em inglês, nem precisaria dizer. Poderia ficar aqui horas falando de privilégios que são completamente naturalizados. Acessar determinados discursos e saberes de resistência também é facilitado por privilégios.
Agora, se vc entende privilégio numa perspectiva moralista, se vc entende militância como uma disputa maluca sobre quem é mais legitimamente oprimido em que qualquer e todo contexto e discursividades FACILITADOS por alguma forma de privilégio são, por si mesmos, a priori, uma forma de organização ilegítima… sinto em dizer que essa militância está fadada a auto destruição. Militância não é sobre disputa moral, é sobre resistência e sobrevivência de grupos oprimidos.
Comentário que fiz refletindo sobre um post da Maria Clara Araújo.
Tá assim de gente cisgênera falando no topo dos seus privilégios sobre pessoas trans – sendo acadêmicas, profissionais da saúde mental/física, etc – e que se recusam a usar o termo cis porque “não gostam”, “porque é modinha”, “porque reforça o binário/estereótipo de gênero”, “porque é um termo invasivo”, “eu sou não trans, eu tenho o direito de escolher o termo para me designar, respeitem a auto denominação como eu respeito das pessoas trans mimimi” (percebam a perversidade da falsa simetria aqui)… Eu vejo como isso é EXTREMAMENTE comum e recorrente.
Olha, sinceramente. Se você é uma pessoa cis e se atreve a falar sobre pessoas trans e nem ao menos reconhece o termo cisgênero (e portanto, nem ao menos pode reconhecer seu lugar de fala!), temos aí um problema. Isso porque só por causa disso já podemos colocar em questão a validade das suas falas sobre a transgeneridade – seja na sua atividade acadêmica, seja na sua prática terapêutica, na militância, etc. No sentido de que há implicações éticas e políticas que não podem ser apagadas.
É no mínimo questionável que você pessoa “não trans” não consiga estabelecer uma relação de alteridade em que o termo cisgênero esteja presente. Recusar o termo cisgênero é o mesmo que travar as relações de alteridade, pois você não reconhece o Outro como ser de igual consciência. Negar a cisgeneridade é colocar a transgeneridade sempre remetida a posição de Outro inessencial, abjeto, já que você não estabelece uma relação identitária/constitutiva com esse outro.
Olha… cheguei a uma mini conclusão. Não quer se reconhecer como cisgênero? Isso é desagradável pra você? Ok, beleza. Só não vá então se atrever a falar sobre transgeneridade. Se você não quer se reconhecer como cis, tudo bem, só não vem tentar vender sua teoria sobre pessoas trans pra subir no trampolim da academia e ganhar pontos no currículo. Tudo bem não querer saber de cisgeneridade, só não vai se aproveitar então de reserva de mercado como profissional da saúde mental/física. Por aí vai.
Comentário que fiz acerca de um post de Indianara Siqueira
Pro discurso cissexista – inclui-se o jurídico – nós mulheres trans não somos mulheres, mas “fenótipos femininos”. Um fenótipo feminino não é um sujeito de direito. O fenótipo feminino é apenas objeto de sanções, da administração dos corpos segundo o cistema: não podemos mostrar nossos peitos com “fenótipos femininos” em público, mas não somos sujeitos de direitos jurídicos como as tidas mulheres de verdade. Não podemos ter direito a um nome que condiga com a realidade, frequentemente nosso direito de frequentar espaços públicos – banheiro, por ex. – é colocado em questionamento (em espaços privados então nem se fala!), não podemos acessar direito a saúde integral, pública e de qualidade, não temos direito a um sexo jurídico, apesar do nosso “fenótipo”, não temos direito a acesso a empregos dignos, porque não existe lei e mecanismos que punam a discriminação transfóbica. Afinal, somos apenas um fenótipo feminino, aparência ou enganação. Não soa objetificante?
Comentário que fiz acerca de um post de Daniela Andrade
Engraçado né… transexualidade não existe mas ao mesmo tempo existe todo um protocolo extremamente rígido, discursos e critérios diagnósticos que estabelecem o que é a “transexualidade verdadeira”. Toda uma miríade de profissionais – médicos, psiquiatras, endócrinos, psicólogos, juízes, advogados, assistentes sociais, e mais todo um aparelhamento ideológico e de peritos da cisgeneridade – que irão atestar o famoso laudo CID que na prática restringe direitos que deveriam ser inalienáveis – direito a saúde, a documentos oficiais, a educação, a empregos, a família – só pra começar. E a travesti? E a travestilidade que apesar de constar marginalmente no CID, não tem peso suficiente de conceder cidadania e direitos?
Sim, é exatamente isso que você leu; ou você acha que o fato de que a maioria das travestis e pessoas trans não acessarem empregos formais se dá por puro acaso ou ordem natural das coisas? Ou seja: precisamos acessar o diagnóstico de transexualidade para poder acessar direitos básicos. Coisas que seriam da ordem mais natural das coisas, um simples navegar pelo mundo, como entregar um currículo de emprego para procurar trabalho se transforma num verdadeiro transtorno para pessoas trans. Pois veja só, nós não temos direito a um nome oficial. Numa entrevista de emprego, isso faz toda diferença entre o enunciado “você está contratado/a” e “ligamos mais tarde”. Faz diferença entre você ter que explicar detalhes da sua vida pessoal – o porquê do seu documento não estar conferindo com a realidade – num momento em que isto jamais seria necessário e relevante para uma pessoa cisgênera.
Mas o que resta é a afirmação de que “transexualidade não existe”. Quem dera fosse verdade.
Comentário que fiz acerca de um post de Éris Sônica
Eu vejo a dificuldade das pessoas cis se reconhecerem como cisgêneras (ou mesmo entenderem o que significa o termo) justamente pelo fato de que elas não se “dão conta” (não conhecem) pessoas trans. Nossa existência social é relegada ao invisível, sendo que a única visibilidade que temos acaba caindo nestes imaginários de pessoas perversas (‘perigosas’, ‘doentes’, ‘normativas’, etc). Justamente por esse silenciamento, marginalização, invisibilidade… É sintomático quando as pessoas cis confundem o termo cis como significando “homem” ou “mulher” ou mesmo “hétero”, justamente pq elas não conseguem dar sentido a palavra trans. Não há pq existir cis pq trans não faz sentido em si mesmo. Pq nossa existência social é nula, não temos representação… falta imaginário. Nessa recusa ao termo cis está implícito a dificuldade de simbolizar a existência dos nossos gênero e da existência mesma das pessoas trans.
Para aquelas que dizem “é muito difícil apagar a socialização masculina”; “hora ou outra a socialização masculina irá aflorar” (como se socialização fosse algo metafísico); tendo em vista generalizar as experiências e vivências de mulheres trans e travestis… aqui vai o recadinho.
Então né, muito engraçado vc pegar casos pontuais de mulheres trans ou pessoas não binárias que possuem alguns (e restritos) privilégios de passabilidade cis ou “socialização masculina” e generalizar isso para uma população cuja expectativa de vida média é 30 anos e 90% se prostitui (não preciso dizer que muitas delas por falta de escolha). Curioso o discurso do feminismo radical sustentar esse argumento de socialização tomando casos individuais de pessoas no facebook que é extrapolado na forma de uma espécie de teoria sobre socialização de pessoas trans. Precisaria dizer que isso incorre em algo chamado evidência anedótica?
A ideia que as feministas radicais costumam fazer sobre a socialização de mulheres trans é extremamente equivocada. Isso porque não foi de fato interesse em momento algum destas feministas compreender como a MAIORIA esmagadora das travestis e pessoas trans são socializadas: bullying, estupro (sim, eu já notei como é recorrente acontecer estupros de mulheres trans e travestis nos seus percursos escolares) e expulsão escolar (como se não bastasse as agressões, incluindo de natureza sexual, pessoas trans não podem contar com a proteção de professores e diretores escolares, já que muitas vezes são eles mesmos os perpetuadores e naturalizadores destas violências), expulsão familiar e violência doméstica, falta de acesso a empregos formais devido a transfobia e ausência de uma lei de identidade de gênero (se você foi expulso de casa e da escola, além de não ter um teto para morar, você se encontra numa posição marginal na qual você não encontra acesso a meios de obter bens materiais para garantir sua sobrevivência e vida minimamente digna) violência policial (como a prostituição não é um trabalho devidamente regularizado, isso dá a margem para que a polícia pratique diversos tipos de abusos contra as pessoas que se prostituem, incluindo extorsão de dinheiro para que elas possam viver, quero dizer, morar inclusive) apedrejamento (sim, é uma violência extremamente comum entre as travestis), acesso a saúde negado, em especial a questões específicas, violência na prostituição … Isso é a socialização de uma travesti.
Não tomem a socialização daquele homem cis hetero branco de classe média que vc convive no seu cotidiano como a socialização média de uma travesti. Isso é silenciador. Vocês feministas radicais nem ao menos convivem e conhecem a realidade das pessoas trans e se julgam verdadeiras peritas na forma como elas supostamente foram socializadas. Curioso né?
Vejam o enunciado de um sujeito numa discussão em que o dito cujo é contra cotas em universidades públicas (numa discussão contra cotas raciais e para pessoas trans)
“Homossexualidade não é opção, ser travesti é”.
Gostaria de localizar quais são os discursos e saberes que tornaram esse enunciado enunciável, provido de algum sentido, mesmo que seja um sentido um tanto restrito. Sentido esse articulado como argumento em uma discussão. Restrito mesmo a um contexto mais imediato de interlocução: o sujeito disse isso numa discussão de facebook argumentando contra cotas. “Cotas para travestis é um absurdo”, dizia ele.
Chega até ser cômico quando esse enunciado é lido e interpretado a partir de outras perspectivas, outras posições discursivas. Afinal, uma comparação tão rasteira entre identidade de gênero e orientação sexual feita dessa forma de fato soa não apenas impreciso, mas ridícula. Mas a gente poderia se ater um pouco nele. Homossexualidade não seria opção, enquanto que “travesti” – seria talvez travestilidade? – é. O enunciado certamente dialoga com outros discursos, aqueles que diriam que orientação sexual homossexual, não apenas a condição de ser travesti, seria escolha. Certamente já ouvimos o discurso de que homossexualidade é uma “opção sexual”.
Mas eu continuo um tanto perplexa pela existência do enunciado. O que teria na condição de orientação sexual desviante da norma heterossexual um componente mais “fixo”, quero dizer, “mais” constitutivo da identidade do sujeito (como característica inata) do que a condição de identidade de gênero desviante da norma cisgênera? Quais contextos históricos de lutas mais amplos tornaram essa diferença – que pesa orientação sexual e identidade de gênero de forma diferente – enunciável? O que faz o gay um destino lógico da biologia ou de alguma outra forma de metafísica do desejo e a travesti uma escolha tida, digamos, um tanto quanto imprudente? Um acidente sem sentido? Afinal, quem em sã consciência “escolheria ser” travesti a menos por uma falta de juízo crítico da realidade? O que faz do “ser homossexual” uma ontologia constitutiva do sujeito e o que faz do “ser travesti” uma mera escolha que só poderia ser imprudente?
Ora, se estamos falando de cotas e seu argumento vai no sentido de ser contra elas, parece ser interessante apelar para esse caráter de “escolha eletiva” de “ser travesti”. Afinal de contas, ninguém está lutando a favor de cotas para homossexuais cisgêneros. Contudo, será que paráfrases do tipo “é uma escolha não ser travesti” ou “é uma escolha ser cisgênero” seriam igualmente proferíveis?
Parte do argumento parece ir numa certa direção de mão única. De certa forma, faz sentido ser contra cotas para travestis partindo do implícito de que “qualquer pessoa poderia ser travesti” que desliza para “qualquer pessoa poderia se reivindicar indevidamente como travesti para usufruir do sistema de cotas”. Sabemos também como o argumento é bastante parecido quando falamos de auto identificação quanto raça/etnia. Falar de uma certa “escolha/opção individual” também nos faz retirar do discurso do sujeito coletivo que luta por direitos.
Mas o que parece faltar de fazer sentido diz respeito ao fato de que, a revelia de uma existência de um devir travesti selvagem, em que toda e qualquer pessoa tem a potência de se tornar travesti, nem todas as pessoas são travestis. E de fato nem todas as pessoas – diria, a maioria delas – jamais iriam se reivindicar e serem – num sentido amplo da palavra – travestis.
A direção única deste argumento contra cotas para travestis trabalha politicamente esse silêncio discursivo. O fato incontornável de que nem todas as pessoas são trans; a existência pesada e insuportável do significante cisgênero. Alteridade que toca a questão do real das identidades e o real da formação social, tendo em vista que as posições empíricas que travestis ocupam na sociedade são muito diferentes daquelas ocupadas pelas não-travestis. Não esqueçamos dos números “90% se prostituem” e “30 e poucos anos de expectativa de vida”. Números que desvelam: exército de mão de obra extra-precarizada e “roubo” de 40 anos de nossas vidas.
E você: é a favor cotas para travestis e pessoas trans em empregos e universidades?
Vamos falar de teoria queer, academia, termo cis? Olha só uma curiosidade: termo cisgênero não é reivindicado como categoria analítica por grande parte dos teóricos queer. Aliás, há muita resistência do termo cisgênero em discursos acadêmicos. Quem dera o termo cis fosse difundido nas análises da maioria dos estudos de gênero acadêmicos. Pois é, não é. Termo cis começou a circular sobretudo em discursos transfeministas.
Vamos falar de exclusão dos espaços acadêmicos? Sim! Vamos falar como pessoas trans são excluídas desses espaços. Afinal, grande parte das pessoas trans são expulsas antes mesmo, durante o percurso escolar. Isso tem impactos na teoria e na prática política. E como isso se reflete sim na falta de uma categoria analítica que dê conta do outro do Outro: cisgênero. A categoria cis serviria sobretudo para demonstrar que entre a categoria trans e aquilo que ocupa sua diferença – o que é não-trans – não há um espaço vazio.
Ao contrário, cis é o que não é trans. Pura diferença. Cis não é sinônimo de mulher, de estereótipo imposto e normas da feminilidade. Cis deveria fazer sentido na medida em que trans deveria fazer algum sentido. Se não faz sentido é porque nós pessoas trans somos silenciadas quanto nossas questões. Incluindo espaços acadêmicos e políticos. Quero dizer: se trans não faz sentido é porque nossas vidas não fazem sentido, nossas demandas políticas não fazem sentido. Somos facilmente apagadas do discurso.
Se o termo cis não consegue obter algum significado em si mesmo é porque o termo trans parece faltar sentido. Se “trans” é nada, “cis” é sem sentido. Se cis não obtém sentido – nas relações das cadeias simbólicas – há o deslizamento de sentido de cis para “hétero”, “mulher”, “estereótipos impostos da feminilidade”. Toda vez que cis não significa enquanto cis – enquanto sua opacidade própria – é porque uma cadeia de significantes é barrada. A alteridade é barrada. Silenciamento do que é trans, das questões trans, das nossas vidas e materialidades. Transfobia.
Então, vamos voltar para o planeta Terra e contra-argumentar teorias absurdas feitas especialmente para “incriminar” mulheres trans.
Mictório é um negócio bizarro que existe no banheiro masculino e a construção deste artefato em banheiros jamais foi pauta de mulheres trans. Pra mim, aliás, isso nem precisaria existir no banheiro masculino. Jamais se pautou a construção de mictórios em banheiros femininos, isso jamais foi e será uma reivindicação política das pessoas trans. Explico.
Vi circular uma imagem em que supostamente existiria um banheiro feminino com mictório e supostamente tinha pessoas “comemorando” isso. Primeiro que isso soa extremamente fake. Isso soa algo como “pânico trans”, uma tentativa jogar com o imaginário cissexista sobre mulheres trans, colocando-as como seres que querem invadir o banheiro feminino e mostrarem seus genitais a público para dai argumentar a favor da exclusão de mulheres trans de banheiros públicos. Porque né… uma pessoa trans usar o banheiro nunca significa que ela vai lá pra mijar e cagar, mas para agredir as pobres pessoas cis. Vejam só, para fazer xixi e cocô basta um assento de privada e uma cabine individual. Daquelas que a gente vê em todo banheiro público, sabe?
Quando mulheres trans reivindicam o uso do banheiro feminino é porque, vejam só, se trata de algo essencial na vida de qualquer pessoa. Quando falamos sobre a necessidade de uso do banheiro não estamos falando que vamos ficar peladas e mostrar nossos genitais, tampouco que queremos construir mictórios em banheiros femininos para exibir genitais em público. Quando falamos em usar o banheiro estamos estritamente falando sobre usar banheiro (tal como os banheiros existem e sempre existiriam!), e isso ser um direito básico, simplesmente.
De volta ao planeta Terra, obrigada…
O novo hit transfóbico do momento é comparar identidades trans com uma forma de delírio e fazer a alusão de um sujeito que “pense que é Napoleão”. Claro, se identificar com outro gênero que não tenha sido o mesmo com o que te foi designado ao nascer é a mesma coisa que achar que você é Napoleão. Aliás, isso na verdade não é nada novo, existem toda uma miríade de discursos psiquiátricos que historicamente relegaram às inconformidades às normas cisgêneras à patologia mental. Para o discurso cissexista continua fazendo todo sentido, a despeito de avanços mesmo no discurso psi.
Não vou entrar no mérito sobre o delírio de se identificar com um personagem histórico, como Napoleão. O que me interessa aqui é observar como identidades não legitimadas são entendidas como meramente delirantes. O que nos faz questionar um fato incontornável: e se achar homem sendo designado homem ao nascer, ou se achar mulher sendo designada mulher ao nascer é um fato natural, “mais real”? O que faz das formas de identificação trans serem vistas como “mais imaginárias” e aquelas cis “mais reais”? Quais discursos corroboram essa construção dicotômica “mais real” vs “mais imaginária”?
Quando o discurso cissexista se depara com o fato incontornável de que a cisgeneridade mesma é uma construção; quando o discurso cissexista se depara com o fato incontornável que todo gênero é desde sempre uma forma de construção profundamente real E imaginária; quando o discurso cissexista se depara com o fato incontornável da alteridade constitutiva com o Outro delirante que estabelece a coerência da normalidade do Mesmo; enfim, quando o discurso cissexista se depara com o real impetuoso do gênero, a cisgeneridade se mostra como um delírio tão imaginário quanto a transgeneridade.
Engraçado, as terfs colocam a feminilidade como um algo já dado, quase como se fosse um objeto tangível dado pelo socialização da mulher cis, para diferenciar as experiências/vivências da mulher trans. O que subjaz isso é “a feminilidade verdadeira é aquela da mulher cis pois é esta feminilidade que nós fomos forçadas a lidar com a socialização de gênero cis”. Ou seja, aqui as experiências trans são vistas como “apropriadoras”, uma mulher trans estaria se “apropriando” da feminilidade, já que se trata de uma “falsa” feminilidade, já que a verdadeira feminilidade se daria tão somente com a socialização cisgênera. Ora, eu poderia objetar com o exato MESMO argumento, falando sobre uma experiência única e específica de socialização das pessoas trans. Poderia objetar igualmente que se trata de um abuso mulheres cis acharem que sabem mais como é a socialização de uma pessoa trans do que as próprias pessoas trans. Poderia objetar que são as pessoas trans que são socializadas numa cultura transfóbica, e isso significa lidar com especificidades e opressões próprias a esta socialização. Eu poderia igualmente objetar de que nossa experiência com o gênero jamais é igual a das pessoas cis: pessoas trans são socializadas como pessoas trans, sendo um disparate uma pessoa cis querer se apropriar de nossas vivências para corroborar uma teoria que diz respeito tão somente com sua realidade. Quer dizer… tudo é questão de retórica.
Vamos pensar sobre feminismo e feminilidade?
Há um certo feminismo que se intitula radical que se promove fazer uma crítica às relações de poder patriarcais apontando a necessidade de abolição de gênero. Nesta perspectiva, a feminilidade aparece tão somente como uma forma de amarra às mulheres, o poder enquanto tão somente dominação e opressão.
Acho válido e necessário criticar padrões hegemônicos de feminilidade? Sim, com certeza. Acho válido estabelecer critérios demarcatórios entre aquelas mulheres que conseguiriam serem “mais críticas” da feminilidade, supostamente mais livres, do que outras mulheres? Não, temos aí um grave problema.
Há muito tempo vejo neste feminismo a construção da imagem mulher errada e equivocada, a mulher alienada, enganada e “burra” que escolheria a feminilidade em contraposição a mulher “livre” do gênero e das amarras da feminilidade porque encontrou a “verdade” ou até mesmo se reencontrou com a “natureza”. Verdade ligada a natureza que tão somente o feminismo radical poderia proporcionar.
A mulher errada ou iludida é aquela que supostamente reproduz os estereótipos de gênero. A mulher trans talvez seja o exemplo mais extremo da forma como o feminismo radical necessita posicionar mulheres em posição de Outras para se constituir. Mas vemos também como este mesmo feminismo pode ser especialmente excludente com mulheres cis inclusive, ao estabelecer estes critérios demarcatórios: ou você é uma mulher natural, ou você está caindo na ilusão da feminilidade, ou você está se assujeitando à heterossexualidade compulsória, ou você se intitula enquanto “lésbica política”.
Como Hailey Kaas já disse em um texto (https://generoaderiva.wordpress.com/…/meu-feminismo-defend…/), nosso feminismo deve ser para todas as mulheres, inclusive para aquelas que incorrem em “estereótipos” de gênero. Afinal: não existe possibilidade de escolha 100% livre fora de qualquer assujeitamento, o que não significa dizer que nós somos mecanicamente determinadas pelo o que está posto. Trata-se de compreender o paradoxo da escolha e as práticas de resistência. Não há escolha 100% livre das relações de poder e da situação dada (como pontua Beauvoir, só há escolha frente a uma situação prévia de existência) e as resistências se dão dentro das relações de poder.
A quem interessa advogar a feminilidade tão somente como algo homogêneo e unívoco, sem possibilidade de questionamento e contradição? A quem interessa pensar a feminilidade tão somente como imposição, como algo que diz tão somente “não” e interdita? A quem interessa não observar as possibilidades de resistência, de feminilidades contra-hegemônicas e feminilidades que falham ao imperativo patriarcal? A quem interessa observar a constituição da subjetividade da mulher tão somente como obediência?
Proponho pensar um feminismo menos utópico, um feminismo do presente. Um feminismo que compreenda as reais formas de resistência e luta dos sujeitos. Não se trata de advogar para certa metafísica da ausência de gênero enquanto ausência ideal do poder, mas de compreender o feminismo como justamente o movimento capaz de tensionar o poder. Um feminismo que não busque a ideia originária de um ser mulher natural, fora do mundo e fora do gênero. Procuro pensar uma mulher extremamente mundana mesmo, a que age a partir de sua situação de existência concreta que jamais é da ordem da natureza. Nossa existência é social.
Em apoio a Amara Moira, que tinha sido alvo de ataques transfóbicos
Colocar a amamentação como algo “natural e belo” faz parte do mesmo discurso que cerceia e controla o corpo feminino. Naturalizar e endeusar o feminino é face da mesma moeda que coloca o feminino como pervertido e falso. Se trata da mesma dicotomia: só faz sentido dizer que algo é “natural” na medida em que você pressupõe o pólo “artificial/falso”; só faz sentido falar em “belo e sagrado” se você opor ao pecaminoso e abjeto.
O discurso misógino opera igualmente com estas dicotomias. Não pode ter amamentação em público porque é algo “sagrado/proibido”. Não pode ter amamentação porque o corpo da mulher, por ser “sagrado/inviolado”, precisa ser domesticado, disciplinado, mantido no ambiente fechado e privado. Percebam o funcionamento destas práticas misóginas. Resistir a estas práticas pressupõe necessariamente um questionamento a esta dicotomia natureza-artifício; sagrado-profano que simboliza tanto o feminino e os corpos femininos.
Neste sentido, todo apoio à Amara Moira. Não há nada de sagrado ou profano em amamentar ou fingir estar amamentando. Não há fetichização tanto na “amamentação verdadeira” quanto em um ensaio de fotos de uma mulher com um boneco. Devolver a amamentação o aspecto de fato corriqueiro significa se abster destes tipos de julgamentos que tomam a existência dada da natureza “verdadeira” em oposição ao artifício e ao “pecado”. Ensaio de fotos que a Amara pensou justamente para questionar os parâmetros arbitrários e misóginos desta rede social.
Em meios feministas e de esquerda conservadores (leia-se especificamente, transfóbicos) há a construção de um argumento que se baseia no suposto fato de que apenas homofobia existiria enquanto opressão “real e material” na sociedade, ao passo que transfobia, argumenta este discurso, não existira. Dessa forma, argumentam eles, o ódio destinado a pessoas trans se daria tão somente pela homofobia já que para a sociedade “somos todos viados”, quer dizer, um crime contra uma pessoa trans é entendido enquanto homofóbico pois supostamente o que motivou o crime seria o fato de uma pessoa trans ser vista como homossexual. E chegam inclusive a mobilizar a imagem do que supostamente ocorreria na “mente” do agressor acerca da natureza deste crime de ódio, a fim de se chegar numa espécie de essência explicativa da própria necessidade de se nomear “homofobia” em detrimento de “transfobia”.
Ora, vejam só, eu posso usar o EXATO mesmo argumento para desconstruir essa história de que transfobia não existe. Vamos lá então. Se você quer argumentar que “tudo é homofobia” porque o agressor acha que somos todos homossexuais eu digo exatamente o contrário e poderia afirmar que “tudo é transfobia” argumentando que o agressor acha que todos são “viados”, todes nós somos “TRANSgressores”. Afinal, se a recíproca for verdadeira, se pessoas trans são vistas como homossexuais é certo que homossexuais são também vistos como pessoas trans.
Então quem vence essa disputa discursiva sobre qual opressão existe na “real materialidade”? Conseguem perceber o real jogo de retórica aqui camuflado sobre um pretenso discurso que julga conhecer o real?
Ora, eu poderia inclusive fazer uma argumentação ainda mais sofisticada e afirmar que é a transfobia a motivadora de todo tipo de ódio contra minorias que transgridem a hetero e a cisnormatividade. Poderia inclusive argumentar que a transfobia é uma opressão mais “material” que homofobia, visto que a homofobia, no rigor da palavra, se referiria TÃO SOMENTE à orientação sexual, e orientação sexual, em última instância, é puramente subjetiva e auto-identificatória (e não percebida enquanto evidência pelo olhar agressor da sociedade) ao passo que é a transfobia que se refere ao GÊNERO SOCIALMENTE PERCEBIDO enquanto transgressor da norma cisgênera.
O que quero dizer com isso? Orientação sexual não é necessariamente um atributo visualmente percebido socialmente ao passo que é desde sempre a questão de gênero percebida socialmente que motiva ódios de natureza transfóbica+homofóbica+bifóbica+sexista…
Mas evidentemente não me interessa aqui estabelecer novas hierarquias do tipo “transfobia é mais material que homofobia”. Quero ao, contrário, apontar para especificidades em relação a questões de orientação sexual e identidade de gênero e propor análises que de fato levem a intersecionalidade no seu sentido mais forte.
Quero também apontar como estas formas de argumentação de que “transfobia não existe” são inconsistentes: não se sustentam absolutamente na medida em que nos propomos o mínimo de esforço analítico e crítico.
Sobre comparações esdrúxulas e transfóbicas em relação a identidade de gênero e questão racial. Sobre a história da mulher branca lá dos EUA que se diz negra e isso ser usado de forma bizarra pra desqualificar a existência de pessoas trans ao propor uma comparação entre transgeneridade e “mentir” em relação a sua raça.
Falsa comparação. Essa comparação pressupõe que apenas pessoas trans tem identidade de gênero e pessoas cis teriam os seus gêneros “verdadeiros”. Essa comparação só faz sentido sustentando-se em cissexismo. O gênero das pessoas trans não é “identidade” que se oporia a uma suposta materialidade real pertencentes à cisgeneridade enquanto mera evidência. O gênero das pessoas trans é tão real ou imaginário quanto de pessoas cis. Pessoas cis não detém a “verdade” real das identidades de gênero.
Pessoas trans não se “identificam” em detrimento de “serem na realidade”. Pessoas trans são pessoas trans; nós pessoas trans temos questões políticas próprias a nossa situação, na medida em que vivemos numa sociedade transfóbica. Nós não somos um engodo em relação à cisgeneridade. Meçam suas comparações.
Neste caça às bruxas contra a palavra “gênero”, pessoas trans, travestis e transexuais configuram o grupo potencialmente mais afetado. Pessoas cis não -hetero tem a palavra “orientação sexual ” a seu favor, tal expressão não tem gerado nem 1% de pânico que a palavra “gênero ” tem gerado ultimamente. Mulheres cis tem “sexo”, ao passo que pessoas trans tem “identidade de gênero “. Assim, numa canetada se exclui pessoas trans, na maior espontaneidade movida pelo pânico à uma palavra. Quando a tia Butler questionava o caráter pré discursivo do sexo, é exatamente disso que estamos falando.
Curioso, sempre que radfem ousa falar de mulheres trans e travestis elas desembocam em enunciados do tipo “mulher não é vestir saia, mulher não é vestir nossos sapatos, mulher não é passar batom”. Como se ser travesti ou mulher trans “fosse” isso. Olha, eu acho mesmo que a única coisa que essas pessoas fazem é abrir um dicionário e ler a definição que está lá de travesti do tipo “homem que se veste como mulher”. Queridinha, deixa eu contar uma coisa procês. Ser travesti ou mulher trans, muito antes de se referir a um indumentária, é sobre: sofrer violência doméstica, ser expulsa de casa, apanhar na escola, ser estuprada na escola, ser expulsa da escola, ser escorraçada de empregos, ter acesso a saúde negado. E tudo isso sem contar das violências simbólicas mais “sutis”. É muito óbvio para mim que ser travesti ou mulher trans não é sobre usar os “nossos” calçados. Mas pra quem tem a única via de acesso de representação de pessoas trans pelo dicionário… realmente, dá nisso.
E hoje a gente ouve feminista falando que a nossa sociedade se importa muito mais com os assassinatos de travestis do que com o de mulheres cis. Como se travestis, vejam só, representassem corpos e vidas que tivessem muito valor e importância para a nossa sociedade. Para estas feministas, vejam só, se é “macho” – travesti neste discurso é entendido como “macho”, já que assim foram designadas ao nascer – automaticamente a sociedade irá super-protege-las de violências.
Curioso, se vivemos numa sociedade em que se trata tão bem as travestis, afinal, elas são “machos”, e nossa sociedade protege os “machos”, eu acho que já seria uma hora, tipo assim, oportuna da nossa sociedade começar a falar do fato de que somos o país em que mais se mata pessoas trans do mundo. Se as vidas das travestis importam tanto, porque ninguém se escandaliza com o fato da expectativa de vida desse grupo ser de apenas 30 e alguns anos? Porque ninguém fala disso, porque o poder público se omite como se nada tivesse acontecendo? Afinal de contas, todos sabemos que nossa sociedade se importa muito com a vida das travestis.
Se somos uma sociedade em que damos tanto valor para a vida das travestis, o que significou a exclusão explícita de “identidade de gênero” da lei que criminaliza o feminicídio? O que significa o fato da lei que criminalizou o feminicídio só ter sido aprovada pela exclusão explícita dos crimes contra as vidas trans? Curioso: somos uma sociedade em que supostamente nos importamos “mais” com as mortes das travestis mas ao mesmo tempo somos a sociedade em que os direitos dessa população são mera moedas de trocas. Transfeminicídio foi moeda de troca para a aprovação do feminicídio.
Pois é, como podem ver, certas argumentações são bastante difíceis de serem sustentadas frente a realidade.
Uma estratégia recorrente do discurso transfóbico é transformar a reivindicação da legitimidade dos gêneros das pessoas trans como uma “obrigação discursiva violenta”, como se ressignificar a categoria mulher e homem fosse violento em si mesmo. Como se tratasse de uma “ditadura trans”, afinal, afirmar o nosso pertencimento à vida e ao gênero que nos identificamos é como se estivéssemos impondo violentamente uma realidade patológica ou delirante. Ora, em que medida afirmar o pertencimento das pessoas trans ao gênero que elas se identificam poderia ser considerado uma forma de violência às mulheres cis, como afirma o virulento discurso terf? As violências de natureza transfóbicas se baseiam justamente na crença de que as pessoas trans não podem pertencer de “fato” ao gênero que elas se identificam. E aí está a estratégia pérfida desse discurso, distorcer o discurso de resistência de pessoas trans apontando uma suposta violência. Mas o que fica é o equívoco… como pessoas trans podem violentar pessoas cis apenas por dizerem que suas vivências são tão verdadeiras quanto das pessoas cis? É só dentro de um discurso transfóbico que isso pode vislumbrar algum sentido… o sentido de que nossas existências são erradas, falsas, ilegítimas. Isso, para nós, tem um nome: cissexismo.
Agora pouco eu li um dos enunciados “mais” cissexistas de toda minha vida. Além de absurdamente transfóbico, é evidentemente capacitista. É como se o capacitismo se aglutinasse de uma forma à transfobia tão surpreendentemente que… eu fico sem palavras. Incrível é a pessoa poder enunciar uma pergunta retórica “Porque as pessoas cegas não nascem trans?” como se fosse algo super evidente de que não existiria nenhuma pessoa cega e trans. Como se pessoas trans, todos sabem, são fúteis, só se importam com a “aparência externa”. Cegos não se importariam, tampouco pessoas cis.
Enfim, perceberam né? Percebam o emaranhado de discursos não ditos sobre pessoas trans e sobre pessoas cegas que faz sustentar um enunciado desse como auto evidente. O sujeito que enunciou essa verdadeira pérola ainda fez a maior argumentação em favor de culpabilizar as pessoas trans por sofrerem a transfobia que sofrem. Afinal de contas, se ser trans é uma escolha, porque alguém iria escolher sofrer deliberadamente com a transfobia?
Ora, se trata da velha e conhecida culpabilização da vítima. A origem da violência não está no oprimido como um indivíduo “sem noção do perigo”. A origem da transfobia não está nas pessoas trans, no fato delas serem trans ou no fato delas LUTAREM para poderem viver. A violência está justamente na norma cis, na assunção da humanidade como cisgênera. Na assunção da vida como uma vida cisgênera. Achar que são as pessoas trans que causam a transfobia pelo fato delas se assumirem como trans é um pensamento que ignora como de fato as opressões se estruturam socialmente.
A transfobia e o cissexismo não vão deixar de existir se as pessoas trans não se assumirem como trans por “comodidade”. O fato das pessoas trans não poderem se assumir como trans pela violência transfóbica justamente desvela o fato da sociedade ser transfobica e se estruturar a partir da noção da normalidade cisgênera.
É cada coisa que a gente lê.
Comentário em resposta à página “Gay Anti-Queer”
Aos RADGAYS que estão surgindo agora: apenas parem. Vocês, homens gays, estão agora usando o mesmo discurso terf para cagar regra em cima da identidade das pessoas femininas. Vocês acham que podem julgar as pessoas femininas, em especial as que foram designadas ao gênero masculino ao nascer. Eu digo: vocês estão participando o mesmo processo misógino que julgam criticar. Vocês acham que podem falar a partir de um lugar neutro “não-feminino”, mas este lugar é o lugar da masculinidade hegemônica. A feminilidade é sempre a questão. E a masculinidade RADGAY, desde quando a masculinidade é a base neutra do ser humano? Desde quando você achar que deixar de ser feminino te torna “neutro”? Vá cagar regra em outro universo! Pessoas femininas não são desculpa pra vc desqualifica-las apontando como “fúteis”. A feminilidade não é fútil, não é fútil usar símbolos associados ao feminino. O masculino não é o neutro que vocês podem se arvorar para cagar regra nas pessoas femininas. Esse discurso que se julga libertador só está fazendo mais do mesmo: cagando regra, atribuindo um sentido unívoco e absoluto à feminilidade. ISSO É MISOGINIA MEUS CAROS.
Em suma: a quem interessa advogar por um conceito de feminilidade como pura futilidade ou ilusão? A quem interessa advogar por um conceito de feminilidade que seja reflexo absoluto e inequívoco da dominação patriarcal? É a partir de qual perspectiva que é possível sustentar uma concepção desta feminilidade, a quem de fato isso beneficia? A quem interessa ignorar a natureza dialética do gênero, sustentando assim a masculinidade como universal e neutralidade do ser humano? A quem interessa não perceber as fraturas, as resistências, as contradições, as heterogeneidades, os aspectos contra hegemônicos da feminilidade? A quem interessa vilipendiar a expressão de gênero dos sujeitos abjetos e incompreensíveis à cisnorma a partir da suposição do masculino como neutro ideologicamente? A quem interessa fazer desta concepção de feminilidade como um fato imutável? É apenas a partir de perspectivas misóginas que o feminino e a feminilidade podem ser entendidos desta forma.