Por Marina Porto.
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É com muito esforço, quase sobre humano, que evitarei exprimir o quanto me sinto ultrajada, abstendo-me da sanha por retorsão, e buscarei neste texto apenas delinear, dentro dos limites da Ordem Jurídica, traduções plausíveis para a ultrajante decisão do juiz Luiz Antonio de Campos Júnior que, imbuído da própria repugnação “cristã” contra Travestis, censurou a exibição da peça teatral “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” no Sesc Jundiaí, no dia 15/09/2017.
Tomando por base o último trecho do art. 208º do Código Penal, que tipifica a conduta de “vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”, uma cidadã ajuizou pedido de tutela antecipada contra a exibição da peça, fazendo-se de rogada para buscar, no seio do Poder Judiciário, proteção para o próprio “sentimento religioso”, dizendo-se ofendida porque sua “fé”, “seu” cristo, é encenado em palcos de Teatro por uma Travesti, agindo como quem pudesse, num Estado democrático de Direito, praticar esconjuros e execrações “cristãs” contra a Sociedade.
Para muito além de calar uma exibição Teatral este pedido, desprovido de qualquer prova capaz de respaldar sua suposta razão acusatória, ainda se utiliza de presunção de má fé contra a população transgênero per_se*, em nada importando o teor da Obra ou “um sem número” de Travestis vilipendiadas, estas sim, por sua “fé cristã”.
A parte todo o vício judicial e o ranço “cristão” contra a transgeneridade, cabe ainda referenciar a lição de Damásio Evangelista de Jesus (Direito Penal vol. 3, 2013, p. 101):
“Objeto de culto religioso, por sua vez, são todos os consagrados ao culto. Qualquer bem corpóreo inerente ao serviço do culto, portanto, está abrangido pela definição legal. Assim, não apenas os objetos de devoção religiosa, como as imagens e relíquias, mas também os que se destinam à manifestação do culto, como os altares, púlpitos, cálices, paramentos, merecem a proteção legal. É preciso, no entanto, que tais objetos já estejam consagrados, ou seja, já tenham sido reconhecidos como sagrados pela religião ou já tenham sido utilizados nos atos religiosos. Assim, os paramentos expostos numa loja, ainda não usados, não se constituem em objeto material do crime.”
Resta-me grifar, imbuída de minha consciência hermenêutica, cidadã e sobretudo transgênero, Sujeito de Direito, que jesus é um símbolo* de adoração religiosa, e não propriamente um objeto_de_culto_religioso* enquanto representado em obra artística ficcional, impassível de censura ou licença.
Afastada a caracterização da tipicidade penal, e com ela qualquer pretensão punitiva sobre a exibição da peça teatral em tela, com isso também afastada plausibilidade para o deferimento da tutela antecipada, prossigamos para o descumprimento da obrigação negativa do Estado sobre os direitos de personalidade:
A dignidade da pessoa humana implica, considerada toda a capilaridade normativa que possa atingí-la, no dever geral de abstenção imposto sobre todos, uns sobre os outros, contra as garantias e liberdades individuais. É este mecanismo, enquanto impedimento a que se imponham restrições de qualquer ordem aos direitos de personalidade, que se mostra desrespeitado de forma patente nesta lamentável decisão.
Debaixo de avalização jurisdicional nós, pessoas transgênero, testemunhamos a restrição não meramente de nossa garantida liberdade de expressão, mas sofremos grave atentado contra nossa dignidade quando o Poder Judiciário corrobora a abominação cristã contra nossas identidades, contra nossa personalidade, agredindo profundamente a dignidade da pessoa humana quando atribui ofensividade per_se a cada mulher transgênero, sobrepujando nossa dignidade sob os ditames de um abusivo “sentimento religioso” que não se furta em nos classificar como sub cidadãs, em nos execrar alegando ofender “a jesus” ser representado por ou como uma Travesti, como se a dogmática religiosa da “perfeição” divina os desse o direito de ofender-nos, de acusar-nos de imperfeitos, indignos de representá-Lo, imaginando permissível o constrangimento ilegal pleiteado e escabrosamente deferido, contaminando o Estado democrático de direito com subsídios subjetivos de ordem religiosa.
A liberdade de autodeterminação, a liberdade de consciência, de comunicação intelectual e artística e inclusive a liberdade de credo se vêem ameaçadas diante da forma negligente com que o juiz tratou suas ponderações, não somente por acatar o abuso de alteridade contido no pleito, tratando a população transgênero como se passível da abominação “cristã” ou constrangimentos de qualquer espécie, mas também por olvidar-se que o desprezo e desdém pela religião é direito intrínseco à liberdade de credo, devendo-se portanto, vista a pluralidade que este dispositivo constitucional visa garantir, considerar graus de permissibilidade pela tipicidade conglobante presente na acusação, elementos de análise ignorados por_excelência (sic) ao deferir o pleito censor.
A decisão, além de negligente e de extrapolar os limites impostos pela obrigação negativa do Estado, pelo descumprimento de seu dever_de_não_fazer ao acatar a imposição de aprovações religiosas como condição para o exercício das garantias e liberdades individuais, também se destaca por seu caráter discriminatório, atingindo características de personalidade impassíveis de reprovação, e sobretudo se mostra profundamente injuriosa, ofendendo a honra e o decoro de cada pessoa transgênero que se dê um pingo de respeito, ao ver sob o malhete da “justiça” o escárnio e constrangimento com que são tratadas.
Pelas razões expostas e enquanto mulher transgênero, persona grata para contestar a conduta vergonhosa do juiz Luiz Antonio de Campos Júnior, não posso me privar de exprimir meu mais severo repúdio a este ato jurisdicional.
Sagrada sou Eu.
Sou trans, tenho Dignidade e exijo respeito.
Imagem de destaque: Visual Artist Robson Ferraz