Texto de Caia Coelho.
Dar uma entrevista pra Jaqueline Gomes de Jesus, pesquisadora trans, contando que já criança se reconhecia como trans, ou como menina, é bem diferente de se consultar com um psiquiatra, com quem quase sempre se modula sua narrativa em função de um “convencimento”.
Realmente há uma vivência considerada mais palatável pela cisnorma, mas a cisnorma não é tudo, o contexto cultural não é homogêneo, reto, duro, fixo; é molengo, úmido, fértil, tem zonas de resistência, tem cúpulas de poder, tem o senso comum… Tem muitos retalhos nessa colcha e a gente está sempre elaborando estratégia para lidar com eles.
A medicina usa o argumento que pessoas trans podem se reconhecer muito novas para defender que existem corpos/cérebros “naturalmente” masculinos e femininos. Isso “naturaliza” processos eminentemente sociais e leva, realmente, a uma trans-narrativa forjada, criada para convencer.
Realmente existem crianças trans, negar isso é uma negligência sem tamanho, mas o motivo é outro, e vai de encontro à justificativa da medicina. Desde sempre somos submetidas aos “atributos” da designação. Assim, desde sempre podemos acolhê-los ou rejeitá-los, pois também desde sempre fazemos trocas simbólicas e reais entre o nosso subjetivo e a “objetividade normativa” do mundo, da sociedade ao nosso redor.
Mas isso não quer dizer que estamos enganadas sobre nossas memórias, ou que somos mentirosas compulsivas. Transparência só depende do contexto, de se estamos ou não seguras que o nosso interlocutor parte da premissa que nosso gênero é legitimo e existe, do quanto precisamos dessa legitimação etc.
Imagem: makeuupbyjack