Texto de Amara Moira para a blogagem coletiva do dia de visibilidade trans – 29 de janeiro. Créditos da foto: Lígia Francisco.
Quem piamente acredita que a essência da pessoa (o que ela é de fato, no seu mais profundo) se localiza no cérebro, quem acredita que bastaria congelar esse cérebro para manter vivo o que de mais importante essa pessoa tem, não poderia senão ser alguém completamente dentro dos padrões mais opressores dessa sociedade, homem cisgênero branco heterossexual magro sem deficiência criado nas classes abastadas ou coisa bem próxima disso. Pessoas trans não, elas sabem que são antes de mais nada seus corpos, sabem que a sociedade não lhes deixará esquecer disso em momento algum, em especial as travestis.
O que importa o que nós travestis tenhamos a dizer sobre o que somos? Acaso se dissermos que somos homens deixaremos de ser expulsas de casa, estupradas no banheiro masculino da escola, deixaremos de ver as portas do mercado de trabalho fechadas, de ver na prostituição mais precária o quase que exclusivo caminho para conseguir nossa subsistência, deixaremos de ser tratadas como lixo ou pedaço de carne ambulante? Não importa o que digamos, se homem, se mulher, se nenhum dos dois, seremos sempre e antes de mais nada os nossos corpos, e onde quer que estejamos seremos lembradas disso. A luta para nos encaixarmos no padrão feminino cis (coisa que nos faz ser acusadas de “reproduzir estereótipos de gênero”) é a forma que encontramos para diminuir a violência a que estamos sujeitas: quanto mais sucesso tivermos nisso, mais deixaremos de ser alvo da transfobia para sê-lo apenas da misoginia, o que diz muito sobre o mundo a que temos direito.
A metralhadora de olhares, entre curiosos e hostis, tentando entender o que somos, tentando nos enquadrar dentro de uma ou outra categoria (“é mulher ou homem?”), ao invés de simplesmente legitimar a maneira como vivemos nossas vidas, a maneira como construímos nossos corpos, nossa identidade, metralhadora de olhares que facilmente se converte em violência verbal (“traveco”, “ê João”, “seu lixo”, “vaza”) e física, metralhadora de olhares que nos recorda a todo momento que, por conta do corpo que somos, por conta de não sermos senão nossos corpos, não temos direito de ocupar as ruas à luz do dia, de ter família, de frequentar escolas, de conseguir trabalho. O trabalho a que nos relegam, aliás, sequer é considerado trabalho: não se esqueçam disso, a gente não esquece nunca. Dizer que, congelando cérebros, estarão conservando o mais essencial das pessoas é só mais outra dessas violências que se acostumaram a cometer contra nós. Afinal, o que somos nós senão a zona cinzenta no rosto por não termos como arcar com a depilação a laser, nossa mão grande, gogó, ombros largos, testa protuberante, voz característica? O que somos nós senão o genital com que nascemos, espremido numa calcinha apertada, e que tratam como se estivesse estampado em nossa testa? O que somos nós senão esse peito que se recusa a crescer mesmo com doses cavalares de hormônio? O que somos senão a cicatriz dos socos, facadas, tiros que levamos?
Acreditar que seu cérebro resume o que você é diz muito do corpo que você tem, diz muito da vida que te permitiram viver, mas não diz nada sobre nós.