Por Inaê Diana Ashokasundari Shravya.
“Não há verdade anatômica independentemente de práticas culturais e políticas de repetição coercitiva, que nos levam a ser homens ou mulheres”
Paul Preciado
Feministas reacionárias trans-excludentes querem que a lei Maria da Penha atenda especificamente pessoas do “sexo biologicamente feminino”. Mas o que vem a ser “sexo biologicamente feminino”?
O feminismo reacionário trans-excludente apresenta-se galhordamente como um feminismo materialista. Uma abordagem materialista, entretanto, permitiria entender que não há um “sexo biologicamente feminino”, mas uma associação conjuntural entre atributos físicos e relações econômicas, o que é da ordem do social. Entender o sexo como produzido pelo gênero implica entender que um determinado atributo físico é abstratificado de sua concretude – um todo indiferente às categorias sociais – para se tornar um significador, uma marca da diferença. Que determinados corpos possuem a capacidade anatômica de engravidar, disso não discordamos. A discordância encontra-se entre a associação direta entre a capacidade anatômica de engravidar – portar um útero, trompas de falópio e canal vaginal – e ser mulher. Quer dizer, a biologia não é um destino e a feminilidade é construída e associada – pelas relações sociais próprias do sexismo – a corpos com vagina. Daí alguém poderia objetar: “mas o ser humano tem dois sexos e isso é evidente!”. Bom, é preciso tomar um certo cuidado com supostas evidências, a não ser que você seja um/a liberal, para quem a ideologia da igualdade (“todos somos iguais; se há algum problema, é da ordem do natural”) faça sentido. Também possuímos cores de olhos, formatos da orelha, pés, mãos, nariz, barriga, pernas etc., diferentes, e eles não se tornam igualmente relevantes ao sexo. Quando por acaso se tornam relevantes, é sempre em pertença a um membro de determinado grupo social oprimido. Danielle Juteau-Lee no prefácio ao livro “Racism, Sexism, Power and Ideology” [“Racismo, sexismo, poder e ideologia”, que estou traduzindo com muito tesão], da feminista materialista francesa Colette Guillaumin, afirma que “não é porque se é fêmea que se tem o corpo apropriado [pelo patriarcado capitalista], mas porque se tem o corpo apropriado é que se vem a ser fêmea; e, logo designada pelos genitais femininos, fêmeas se tornam mulheres”.
A afirmação duma determinada diferença da ordem histórico-cultural como sendo biologicamente determinada, é o que se costuma chamar de essencialismo, “uma crença no real, na essência verdadeira das coisas, nas propriedades invariáveis e fixas que definem a ‘quididade’ duma dada identidade”, segundo Diana Fuss. Se esvaziarmos a feminilidade de sua historicidade, atribuindo-lhe um caráter a-histórico, naturalista, o que se tem é essencialismo. Andrea Dworkin, feminista radical estadunidense bastante citada por feministas reacionárias trans-excludentes, chega a afirmar em “Woman Hating”, que o gênero é uma ficção, isto é, é produzido, sendo ele quem confere significado social aos genitais. Noutro livro seu, um conjunto de ensaios, ela chega a escrever sobre essas feministas reacionárias, assinalando para o determinismo biológico presente entre elas. Dworkin seria uma leitura interessante, se e tão somente se ela não incorresse em moralismo quanto à prostituição e à pornografia, uma posição bem deplorável, pois abandona os bons argumentos que apresenta em textos seus sobre outras temáticas como o incesto e a zoofilia, por exemplo.
A apresentação do sexo como um dado inquestionável, como o que define o grupo social “mulheres” decorre da substituição grosseira do materialismo pelo substancialismo, quer dizer, da afirmação da metafísica sexual em contraposição à exposição da historicidade dos processos de sexualização dos corpos. Negar o gênero não resolve o problema do sexismo, tampouco dá cabo de entender seu comparecimento ao lado do racismo, do capacitismo e do capitalismo. A negação do gênero, enquanto aquilo que atribui um significado social a um atributo físico arbitrariamente escolhido, resulta no acobertamento dos processos de naturalização do sexismo. Daí de não se entender que, se mulheres trans passam pelo que passam, é por serem parte do grupo social “mulheres”. Querer a exclusão de mulheres trans é insistir na manutenção do sexismo, porquanto ainda haverão mulheres sofrendo violências. É preciso cuidado, pois, como bem salienta Butler, “na luta pela emancipação e democratização podemos adotar os modelos de dominação pelos quais fomos oprimidas, não percebendo que um modo da dominação funcionar é mediante a regulação e produção de sujeitos”. Não se trata de meramente negar ou recusar a noção de “sexo biologicamente feminino”, mas de pôr um pressuposto em questão, o que, para Butler, “não é a mesma coisa que o suprimir; antes é libertá-lo de sua morada metafísica a fim de ocupar e servir objetivos políticos muito diferentes. Problematizar a matéria dos corpos acarreta, em primeiro lugar, uma perda de certeza epistemológica, mas essa perda de certeza não tem por resultado necessário o niilismo político”. Libertar o sexo de sua morada metafísica é reconhecer que a sua história é a história da constituição política e econômica das sociedades contemporâneas
Não entrarei, neste texto, numa análise sobre a lei Maria da Penha e se ela é efetiva ou não, por não querer incorrer em possíveis equívocos, além de exigir uma análise mais detalhada, embora eu particularmente concorde com a formação de grupos de defesa coletiva como possíveis formas de resposta ao problema da violência sexista.
O caso é que o “nós, mulheres” poderia envolver a construção duma unidade, uma mutualidade feminina (UNIPA), que não resida numa substância comum, mas no entendimento de que somos formadas por relações sociais bem concretas e cotidianas, como sugeriram um dia Guillaumin e Lélia Gonzalez.