She-Male para Quem Sofre de Amnesia

Por Inaê Diana Ashokasundari Shravya.

“O objetivo final da revolução feminista deve ser […] não apenas a eliminação do privilégio masculino mas da distinção de sexo em si mesma: diferença genital entre seres humanos não mais importaria culturalmente”

Shulamith Firestone

Em 1979, Janice Raymond, uma feminista radical lésbica, utilizou o termo “she-male” num livro bastante controverso seu intitulado “The transsexual empire: the making of the she-male”. Tanto ela quanto Mary Daly afirmam que “she-males” são homens que que se fantasiam de mulheres para atacar a essência feminina em nome do patriarcado. 

Para quem não sabem, o termo “she-male” ou “shemale”, é empregado na língua inglesa para se referir a mulheres trans e travestis dentro do contexto da pornografia atualmente. Se você acessar sites como Xvideos, Pornhub, é provável que você se depare com esse termo. Ele serve para descrever uma mulher que possui seios e pau. 

Bom, isso atualmente. Se verificarmos a genealogia do termo, forçarmos um pouco a memória, possamos compreender uma posição antifeminista da Janice Raymond. 

Palavras não possuem uma substância que lhes garante um significado eterno e sobrenatural. Elas possuem história. Por possuírem história, elas não possuem uma continuidade, mas rupturas. Ignorar isso é como usar uma suástica hoje em dia. A suástica não foi criada pelo nazismo, claro, mas o seu uso está vinculado ao mesmo, faz menção indireta a ele. 

A palavra “she-male” é utilizada desde o século XIX, denotando pessoas que de alguma maneira haviam atravessado as fronteiras do binarismo de gênero, e era muitas vezes utilizado para se referir tanto a homens afeminados como a lésbicas [1]. O termo também pode se referir positivamente a androginia. Neste caso costuma ser escrito sem o hífen, “shemale”, como nesta citação referente à mitologia: “the Divine itself was a shemale” [2] – não tem nada a ver com a drag queen Divine -, segundo Ganapati Sivananda Durgadas, no Anything that Moves. A palavra também poderia ser utilizada pra se referir às amazonas, as quais seguidoras de Janice Raymond e Mary Daly costumam usar como referência para seu estilo de vida [3]. No início do século XIX, ela-homem era usada como coloquialismo na literatura americana para mulheres, geralmente de maneira pejorativa [4]. Foi utilizado durante a década de 20 do século passado para descrever uma mulher, geralmente uma feminista ou uma intelectual. 

A palavra passou a ter uma conotação mais negativa ao longo do tempo – provavelmente impulsionado pela reação sexista ao número cada vez maior de mulheres não se restringindo ao trabalho doméstico e sexual, no caso, a reprodução da prole –  e foi empregada para descrever uma “mulher odiosa” ou “vadia”[5]. Até meados da década de 70, era empregada para descrever uma mulher assertiva, muitas das vezes uma mulher que não era muito agradável [6].

Pra entendermos mais ou menos do que se trata essa palavra, talvez fosse interessante pensar no emprego da palavra “mulher-macho”, que possui as características da “she-male” ditas acima. No baião “Paraíba”, de Humberto  Luiz Gonzaga, temos a frase “paraíba masculina, muié macho, sim sinhô”. Há inclusive um filme brasileiro de 1983 chamado Parahyba Mulher Macho, dirigido por Tizuka Yamazaki, com roteiro da diretora e baseado no seu livro Anayde Beiriz, Paixão e Morte na Revolução de 30, inspirado na vida de Anayde Beiritz. Apesar de não ter nada a ver com mulheres, mas sim com o Estado da Paraíba, a palavra “mulher-macho” acabou servindo pra se referir a mulheres com uma postura menos dócil, assertivas e que não dependiam financeira e emocionalmente de um homem. Eu me recordo de quando estava com algumas amigas conversando num bar no Beco do Rato há uns três anos. De repente alguns policiais do Lapa Presente abordaram um rapaz em situação de rua e queriam levá-lo sem qualquer prova de que ele estivesse com alguma droga ilícita – e de fato não estava -. Imediatamente intervimos na situação, pois não havia justificativa para o que estavam fazendo. No fim das contas eles desistiram. Isso fez com que alguns homens cis próximos comentassem que éramos “mulher-macho”, pois encaramos a situação sem medo algum. 

Simone de Beauvoir, já na introdução do seu O Segundo Sexo, livro II, nos diz o seguinte “ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. Enquanto existe para si, a criança não pode apreender-se como sexualmente diferençada. Entre meninas e meninos, o corpo é, primeiramente, a irradiação de uma subjetividade, o instrumento que efetua a compreensão do mundo: é através dos olhos, das mãos e não das partes sexuais que apreendem o universo.” O que faria com que mulheres sejam aquelas que possuem vagina e homens aqueles que possuem pênis? O gênero. É o gênero e tão somente o gênero o que fará com que mulheres tenham vagina e homens tenham pênis, e não o inverso. Tânia Navarro Swain, antes de sucumbir à narrativa da Janice Raymond e adotar um “feminismo nórdico” nos diz que “ o sexo social , ao criar o sexo biológico institui no mesmo movimento as instâncias de poder em que se politizam as relações humanas. Verdadeira mulher, verdadeiro homem, estas imagens estão atreladas ao verdadeiro sexo, a este construto ideal, a este aparato anatomopolítico que dobra a multiplicidade do humano em patamares binários de verdadeiro/ falso, de dominador / dominado, de referente e diferente.” Christine Delphy, em seu Rethinking Sex and Gender, diz que “até agora, a maior parte do trabalho sobre gênero, incluindo o trabalho feminista sobre gênero, se baseava em um pressuposto não examinado: que o sexo precede o gênero. No entanto, embora esse pressuposto seja historicamente explicável, é teoricamente injustificável e sua existência continuada está impedindo nosso pensamento sobre gênero. Está nos impedindo de repensar o gênero de maneira aberta e imparcial. Além disso, essa falta de clareza intelectual está indissociavelmente ligada às contradições políticas produzidas por nosso desejo de escapar da dominação, por um lado, e por nosso medo de perder o que parecem ser categorias sociais fundamentais, por outro.

O que é comum a esses impasses intelectuais e contradições políticas é uma incapacidade (ou uma recusa) de pensar rigorosamente sobre a relação entre divisão e hierarquia, uma vez que a questão da relação entre sexo e gênero não apenas se assemelha a essa questão, mas é, de fato, o mesmo problema.” 

Bom, é notável que “pensar rigorosamente sobre a relação entre divisão e hierarquia” não é algo a que Janice Raymond se propõe, dado que ela afirma existir um império transexual. Se verificarmos as condições de possibilidade de existência para pessoas trans, o que se pode constatar é que, na verdade, o império é cisgênero. A constituição dos Estados, as narrativas dominantes, favorecem a cisgeneridade. Quando aceitam pessoas trans em seu interior, é mediante um processo que Alfredo Veiga-neto chama de “rebatimento”, ou seja, a inclusão implica um processo de dominação, não de acolhimento. Anuladas as diferenças, o que se tem é o que se compreende como transnormatividade, que nada mais é do que o efeito da cisgenerização sobre as formas de vida trans. Caso Janice Raymond tivesse alguma leitura, ainda que simples, sobre o que é um império, ela provavelmente não faria esse tipo de afirmação. Se o faz estando ciente do que se trata, ela age de má-fé, visando a conservação e aprofundamento da estigmatização voltada contra as formas de vida trans. Seu “feminismo radical” aponta mais para um antifeminismo, uma infiltração de valores patriarcais dentro do movimento feminista. Se pararmos pra pensar no contexto brasileiro, é no mínimo absurdo dizer que existe um império transexual, dado que o Brasil é o país que mais mata mulheres trans e travestis no mundo.

“O movimento mais sofisticado da tecnologia consiste em se apresentar exatamente como ‘natural’”, nos diz Preciado no seu Manifesto Contrassexual, e é exatamente dessa forma que Janice Raymond adere ao patriarcado acusando mulheres trans e travestis de realizarem aquilo que ela mesma faz, mas que não se dá conta pois acredita na sua posição de naturalidade, ou como ela diz, por possuir uma “essência feminina”.

[1] Herbst, Philip H. (2001). Wimmin, Wimps & Wallflowers: An Encyclopaedic Dictionary of Gender and Sexual orientation Bias in The United States. Intercultural Press.Pra facilitar, segue o link:   https://archive.org/details/isbn_9781877864803/page/252

[2] Que em português seria algo como “o Divino mesmo era andrógino” ou “o Divino mesmo era uma travesti” 

[3] A respeito disso, faço uso da compreensão do Bookchin sobre o “anarquismo estilo de vida”, que não possui relação com o anarquismo movimento social: Sua linha ideológica é basicamente liberal, fundamentada no mito do indivíduo completamente autônomo cujas reivindicações da própria soberania se valem de axiomáticos “direitos naturais”, “valores intrínsecos”, ou, em um nível mais sofisticado, do eu transcendental kantiano produtor de toda a realidade cognoscível.”

[4] Cassidy, Frederic Gomes; Joan Houston Hall (2002). Dictionary of American Regional English. Harvard University Press. p. 901

[5] Spears, Richard A (1991). A Dictionary of Slang and Euphemism. 
[6] Wentworth, Harold and Stuart Berg Flexner (1975). Dictionary of American Slang.


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