Silvia Federici: Transexuais, bruxas e Xica Manicongo ou Divisão Sexual do Trabalho, Acumulação Primitiva e transexuais

Por Helena Vieira.

Silvia Federici: Transexuais, bruxas e Xica Manicongo ou Divisão Sexual do Trabalho, Acumulação Primitiva e transexuais.

Em “Calibã e a Bruxa: Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva”, a partir da análise do lugar da mulher e da perseguição às bruxas na transição do feudalismo para o capitalismo, Silvia Federici chama a atenção para a apropriação do corpo da mulher pelo capitalismo, no sentido de transformá-la em peça reprodutora, que traria ao mundo mais proletários, desenhando, com isso, uma divisão sexual do trabalho, necessária ao funcionamento do mundo capitalista. O nascimento do capitalismo, aponta Federici, se inscreve no controle duro sobre o corpo da mulher e sobre sua relação com o mundo. Propõe ainda o resgate da noção de mulher como termo de análise histórica, em oposição ao apontamento de algumas correntes pós-estruturalistas do feminismo, que falavam em gênero, somente, ou em escritura feminina.

Federici aponta, nesse sentido, para o gênero como um conceito de classe, necessário a constituição das relações de classe, uma vez que, tais relações, fundamentariam-se na divisão sexual do trabalho. Portanto, toda relação de gênero, seria também de classe, e vice versa. Seriam fatores inseparáveis.

Frente a essa análise, que muito grosseiramente externalizo aqui, me pus a pensar: Mas e as mulheres transexuais e travestis? Obviamente não existíamos com o mesmo “status” que temos hoje, a compreensão era a da inversão sexual, ou da loucura. A saída seria pensar então que, como não estávamos submetidas a lógica da reprodução, estaríamos, portanto, excluídas do processo de divisão sexual do trabalho? A resposta é não. E aqui, gostaria de partir da necessária importância do que “não é” na constituição do status daquilo que “é”. Vejam bem, definir o que não é mulher é profundamente importante para se garantir o que é mulher, o mesmo para a figura do homem. O mesmo para as noções de normalidade. O que é normal só pode existir na exata medida do controle daquilo que é tomado por anormal.

A emergência de uma reorganização sexual do mundo do trabalho, passava, necessariamente, por uma “limpeza” de campo de todos os casos que não cabiam neste novo esquema : produção, reprodução, família nuclear. A manutenção deste esquema, desta tríade, se dá através da constituição de um complexo sistema sexo-gênero-normalidade que estabelece, não apenas a natureza dos sujeitos, do ponto de vista da normalidade, então “útero – mulher- lar- filhos” e “pênis – homem- fábrica/campo-filhos”, mas também a condenação dos sujeitos que não se adequam a este sistema.

O lugar da mulher dependeria da naturalização do útero como única possibilidade de ser mulher no mundo, e da naturalização do pênis como fundamentalmente masculino. Assim como se produzia, nesse mesmo sentido, a noção do desejo correto e do desejo patológico. As mulheres transexuais ou travestis, seriam (perdoem-me o anacronismo, mas por força de clareza do texto, prefiro usar os termos em voga atualmente), portanto, as traidoras do lugar produtivo na divisão sexual do trabalho, portando-se como mulheres, pervertiam o sistema sexo gênero denunciando sua falha em taxonomizar os sujeitos.

A patologização da transexualidade, da homossexualidade e dos ” desvios sexo-gênero” foram fundamentais para a reafirmação da exploração sobre o corpo da mulher e para a divisão sexual do trabalho.

Federici toma como exemplo a perseguição de mulheres como bruxas em Barbado e no Novo Mundo. No Brasil, temos o exemplo da perseguição à Xica Manicongo, primeira escrava travesti (nascida Francisco Manicongo), que consta nos registros do Santo Ofício no Século XVI. Nestes mesmos registros, encontra-se a confusão que ela causava naqueles que a viam com vestes femininas, “como se mulher fosse”.

A história dos corpos que desviam e escapam, sempre caminhou como sustentáculo da opressão dos corpos que estavam na luz. Isso é muito importante de se ter em mente.

Imagem: Maria Preta.