Eu sou uma pessoa transgênera. Isso significa que meu gênero não corresponde ao gênero esperado com o qual me atribuíram ao nascer. Pessoas transgêneras. Pausa… o fato de eu falar em “pessoas transgêneras” ou “trans*” não demostra, como muitas vezes somos instados a achar, que eu estaria descrevendo uma realidade exterior ao que está sendo dito. Uma realidade exterior da linguagem, que seria apreendida em sua transparência. Não, dizer e dizer-se transgênero e trans* significa de outra forma, dada a materialidade do discurso.
Primeiro, pelo simples fato de que, ao dizer, materializa-se certo discurso sobre transgeneridade. Ou sobre o próprio gênero (afinal, dizer “transgeneridade” é outra típica marca de um discurso bastante particular: o “nosso”?). Um (nosso) discurso transfeminista, poderíamos por hora dizer. E um discurso tem sua espessura semântica própria, ou seja, ele cria uma ordem de apreensão do real específica. Específica no sentido de particular: nem universal, nem individual.
Trata-se de funcionamentos internos que são próprios a um discurso: suas cadeias parafrásticas (como uma palavra é designada ao longo do texto através de inúmeras reescriturações, por meio de outras palavras), sua relação (ou disjunção) com a (reinscrição no dizer da) memória e com Outros discursos. “O” sentido está precisamente aí, nesta relação necessária que remete ao dis-curso, enquanto a relação necessária dos sentidos e dos ditos em seus percursos históricos. A língua na história significando materialmente. A materialidade do discurso se refere a tanto aos sentidos que escapam (ou tem a potencialidade de escapar) dada a opacidade do significante quanto à injunção de interpretação de um objeto simbólico sustentado na transparência do sentido. Então o que significa enunciar enquanto sujeito transgênero? Qual seria a apreensão do real que fazemos com o discurso que enunciamos enquanto “nós”, enquanto grupo? Qual é a medida da coerência e homogeneidade do nós trans*? E os equívocos, as derivas de sentidos que sempre escapam e insistem em escapar? Ao longo do texto sou pega pelo impossível do meu próprio discurso, quando, por exemplo, tento falar sobre mulheres transgêneras e ao mesmo tempo me deparar com o fato incontornável de que travestis podem ser mulheres ou tão somente travestis. Ou seja, dizer enquanto nós mulheres trans* se esbarra na própria impossibilidade de representação universal de um ser mulher trans*. Mas é necessário, de qualquer forma, trabalhar esta tensão do impossível.
Ao ler Simone de Beauvoir me deparei com o fato de que a construção do “nós mulheres” não ser algo já dado, livre de contradições. Ao contrário, há a uma impossibilidade da constituição do “nós mulheres”. A mulher enquanto Outra é barrada de se reconhecer enquanto grupo e sujeita, dada sua submissão ao Mesmo do homem e do masculino. E a impossibilidade de reconhecer-se como sujeito(a) é o que sustenta – ao menos em um plano fenomenológico – a dominação masculina. O masculino enquanto universal e o feminino enquanto inessencial (segundo sexo). A mística feminina que se desdobra na dualidade ambígua da mulher mundana e sagrada decorre da forma específica como a mulher é tida como Outra.
Agora me pergunto: e quanto ao nós transgênero? Somos também x Outrx: interditadxs simbolicamente pela cisgeneridade compulsória, em um recalque (ou foraclusão) do significante. Somos objetos patológicos, o terceiro sexo. Nós mulheres trans* seríamos a intersecção do segundo com o terceiro sexo; esta intersecção é o ponto no qual a mística feminina se entrecruza com a mística transgênera. É sobre esta intersecção que pretendo me focar.
Mas, sobretudo, a impossibilidade de dizer nós tanto para o segundo quanto para o terceiro sexo não se dá apenas pela relação ao Outro do cis-patriarcado, mas também com os outros e outras (classe, raça, regionalidade, etc). É neste sentido que Judith Butler, por sua vez, apontará para o perigo da construção de uma coerência normativa sobre determinado grupo oprimido – em especial o grupo de mulheres. A política encontra-se assim ameaçada em dois polos da representação: se de um lado a tomada de consciência enquanto grupo é necessária, como não tornar a luta política deste grupo a reiteração da própria exclusão? O que este paradoxo me insta a pensar é acerca da possibilidade (incontornável) do confronto do simbólico com o político. O que significa, para mim, tomar consciência de mim enquanto mulher trans* e sua relação necessária de enfrentamento e alteridade com o Outro e de intersecção contraditória com as outras e outros. E as outras mulheres trans*, travestis, transexuais… A política da diferença em batimento com a política de contornos que passam a se definir a partir das especificidades das lutas políticas em regiões mais circunscritas: o que entendo por intersecionalidade. Batimento significa sobretudo lidar com a contradição em seus múltiplos vetores e atravessamentos; não significa tentar contorná-la.
Dialética da alteridade cis/trans*: mística feminina e transgênera
A mulher transgênera, ao lado da cisgênera, torna-se a inessencial, uma mulher inessencial. A cisgênera, ao lado da transgênera, é o universal de mulher. Enquanto universal, a mulher cisgênera se aproxima do homem cisgênero. O sujeito cisgênero é o próprio universal do humano. A existência dos sujeitos transgêneros garantem a estabilidade basilar e coerência do universo cisgênero enquanto seres humanos racionais. Se a mulher é o Outro do homem, x transgênero é o Outro do cisgênero; a mulher (cisgênera) estabelece a coerência e a harmonia do homem com a Natureza através da mediação com a mística feminina, como nos propõe Beauvoir; já as pessoas transgêneras reestabelecem a própria Semântica, a consciência enquanto ordem própria do real. Um mundo semanticamente normal. O real do sexo domesticado pelo cissexismo. Proponho pensar então a mulher transgênera enquanto Outro absoluto, na medida em que entrecruza duas mitologias, duas ordens do real que estabelecem a coerência da masculinidade cisgênera.
A experiência transgênera catalogada historicamente como um “delírio”, muitas vezes associada à esquizofrenia, demostra exatamente isto. O cisgênero precisa do Outro transgênero enquanto abjeção delirante para garantir a coerência do real do sexo. O sujeito cisgênero sofre a iminência de ter sua própria consciência do sexo ameaçada pela loucura e a esquizofrenia; a saída é patologizar o gênero do terceiro sexo. É impactante a afirmação de Berenice Bento sobre o que significa a patologização da transgeneridade. A autora aponta para o fato de que a transgeneridade enquanto patologia ser a própria patologização do gênero. O próprio gênero – o Um e o Mesmo – que se encontra na iminência da patologia, do delírio. O cisgênero hesita, teme a sua própria materialidade e acusa o Outro de ser delirante. A má-fé cisgênera está na foraclusão do seu próprio significante que se traduz na recusa de simbolizar o real do sexo enquanto tal, enquanto efeito lúdico no qual o referente sobre o sexo se encontra aberto à polissemia. Aí o sexo se torna autoritário, efeito de uma transparência cissexuada. A polissemia é negada pelo sujeito cisgênero e retorna enquanto patologia/delírio do terceiro sexo como Outro absoluto. O real do sexo volta a se inscrever na equivocidade, e as resistências transgêneras se tornam possíveis.
A mulher transgênera se encontra na intersecção do segundo com o terceiro sexo, o que a torna uma Outra absoluta, relegada a completa abjeção. Pura particularidade e contingência, a mulher transgênera é vista como um acidente patológico, indesejado e ininteligível. O mesmo mito operado que coloca a mulher cisgênera na dualidade sagrado-profano parece se operar de maneira muito mais dramática com a mulher transgênera. Enquanto a mulher cisgênera pode ser ao mesmo tempo puta e santa, a mulher transgênera é operada em uma disjunção radical: travestis e transexuais. Enquanto a mulheridade cisgênera é capaz de suportar em um mesmo ser o mito do sagrado e do profano, a mulher transgênera, por sua vez, é dividida entre duas espécies ontológicas distintas constituídas no/pelo discurso psiquiátrico (exemplarmente; cabe ressaltar que trata-se, antes de tudo, de um discurso disperso sobre a feminilidade transgênera).
A travestilidade e transexualidade não poderiam ocupar um mesmo corpo, enquanto a mulher cisgênera pode ser ao mesmo tempo sagrada e profana. Em se tratando de transgeneridade, só existem sagradas e profanas enquanto entidades ontológicas/nosológicas distintas. A puta e a santa transgênera se encontram em opostos diametrais. São seres que possuiriam essências diferentes. Muitos médicos e profissionais psi clamam para a existência de diferenças entre travestis e transexuais. Clamam sobre a importância de se reconhecerem estas supostas diferenças. De inclusive disseca-las, se for necessário, e também de lutar por elas. O sujeito cisgênero necessita criar esta distinção, pois é necessária para estabelecer coerência do Mesmo e do Um.
É disso que se trata; por um lado a transexual enquanto pura abstração nosológica, ela precisa negar qualquer forma de sexualidade para afirmar-se enquanto feminilidade legitimada. A mulher transexual é quase vista como um sujeito com consciência própria. Mas o preço que a transexual paga é muito caro, já que ela precisa renunciar sua carne, ela precisa ser pura abstração para ser reconhecida enquanto sujeito. Do outro lado a travesti é pura exterioridade. Ela vive em outro universo, o tal “universo trans”, que insiste, contudo, em ameaçar o universo Mesmo. Por isso é necessário estabelecer uma relação de exterioridade. A travesti é o mal absoluto, é próprio pacto com o demônio encarnado nas pistas de prostituição, puro objeto sexual. O homem cisgênero e heterossexual deseja a travesti, ao mesmo tempo em que nega o desejo. A travesti é pura carne abjeta para ser consumida às escondidas; a transexual é a virgem do impossível, ao mesmo tempo heterossexual e assexual/assexuada.
Esta dicotomia mostra a relação de ambivalência que o sujeito cisgênero estabelece com o próprio sexo: entre a carne e o imaginário, perpassado pela iminência do delírio. É por isso que o cisgênero, em especial o médico psiquiatra, insiste nesta diferença essencial. O psiquiatra está protegendo seu sexo do esburacamento do real do sexo que a simbologia transgênera é capaz de operar. Esta é a mitologia da mulher transgênera na qual toma como mística a patologização. Enquanto Outro constituído entre a a abjeção e a patologia, pode o sujeito trans* reconhecer-se enquanto sujeito? Vemos inúmeros percalços e contradições neste processo. Mas é fato que é um processo inelutável de tomada de consciência política; incumbência transfeminista.
Política da diferença e do significante
Diferença enquanto negação, e não positividade: reivindicação para não ser algo; uma política que luta por identidades não idênticas a si mesmas. Ou seja, política do significante e não do significado. A posição de um significante na cadeia simbólica tem sempre a possibilidade de deslizar de posição. É nesta instabilidade constitutiva do significante que o significado se torna movente (e determinado por essa relação). E a resistência se dá na tomada de posição política deste movimento significante. Pretendo, neste sentido, enquanto transfeminista, desestabilizar da cadeia de significantes que dão ao mundo semanticamente normal os sentidos sobre homens, mulheres, transgêneros. Como eu já disse, transfeminismo é a política de uma palavra: cisgênero.
A dificuldade de dizer “nós” também diz respeito aos inúmeros termos que designaria o “nós”. Sobretudo a divisão dos sentidos sobre inúmeros termos. Divisão esta que se opera entre os sujeitos: nossa subjetividade, a constituição do eu enquanto sujeito, se dá a partir da própria constituição dos sentidos.
E justamente na disjunção desse dizer: é possível falar sobre todas as pessoas trans*? É possível ter essa pretensão? Um termo é capaz de unificar a nação transgênera? De logo, nos deparamos com um paradoxo da língua e da representação, na medida em que a divisão de sentidos entre o sujeito-nós estar de tal forma dividida que a própria categoria de transgeneridade esburaca em si própria. Sentido e sujeito se constituem mutuamente. O que nós faz questionar: há algo, enfim, que de fato nos una?
Eu acredito que por uma necessidade política, algo nos una. Mas trata-se sobretudo de uma união estratégica, não essencial. Por isso acredito que seja necessário pensar uma forma de representação política das dissidências à cisgeneridade compulsória através do vetor da transgeneridade. Identidades estratégicas, não nosológicas. Um todo que não é homogêneo em si mesmo, mas é um vetor de transformação política. E dizer isso não significa só esta tomada de posição: significa, desde já, que estou “tomada” desde já por uma posição, dado que falar em “transgeneridade” demarca em si uma posição; um discurso. Uma divisão. Ou seja, se se trata de um discurso, não se trata de outros possíveis. Há um recorte do possível, do real. Dizer algo, dada uma posição, significa não dizer algo dada outra posição. Minha pretensão, paradoxalmente, ao querer “representar” uma categoria política de pessoas trans* se defronta no fato incontornável de que o meu discurso não é universal. Não posso ser porta-voz da população transgênera (visto que a divisão entre sentidos e sujeitos se dão na própria ideologia dominada, ou seja, entre as próprias pessoas trans*), mesmo que o meu discurso simule a ilusão de totalidade de uma categoria, de um sentido (quase) unívoco. Como caminhar neste terreno árido e paradoxal?
A opacidade do discurso é exemplar em recentes discussões sobre o asterisco em “trans*”. Ora significava inclusão, ora exclusão. Ora significava inclusão de todas as identidades trans, ora significava a exclusão daquelas identidades menos inteligíveis (em especial, de pessoas trans não binárias) para a ordem médica, burguesa e cisgênera. O que poderíamos dizer então do asterisco, o que de fato ele significa? O asterisco, assim como qualquer outro significante da língua, não significa a priori do discurso em que está vinculado. Ao contrário, esta relação não nos mostra a relação de sentidos imanentes de um asterisco, mas sim da relação dos sujeitos com os sentidos. Nenhuma palavra significa nela mesma, enquanto suposta imanência da língua. Por isso temos que nos afastar de argumentos como “o asterisco quer dizer x ou y”. O asterisco não “quer dizer”, ele não tem uma intenção significante prévia aos seus usos e suas materialidades contraditórias. Ao contrário, o asterisco significa sempre materializado em um discurso. Se a significação está subordinada ao discurso, temos que discutir discurso. Discurso diz respeito às posições políticas que tomamos. Ou seja, trata-se de discutir sobre as pautas políticas das pessoas transgêneras e as especificidades estratégicas. E eu acredito que dentre de certas especificidades dentro da população trans* a travestifobia e o binarismo sejam questões pertinentes em nosso contexto. Isso porque não podemos simplesmente supor que haja um sujeito transgênero universal, ao mesmo tempo em que não entendemos as diferenças enquanto essências. Como eu disse, as diferenças são parte tão somente de uma estratégia de luta (desvelamento e luta contra opressões). Não podemos ocultar as diferenças, ao mesmo tempo em que não podemos cristaliza-las e criarmos novas exclusões simbólicas.
Temos, enfim, que nos perguntar: o que significa falar transgênero e trans-asterisco em um espaço de enunciação brasileiro? Espaço esse marcado por dicotomias identitárias próprias como entre travestis e transexuais, cujo país é campeão mundial (em disparada) de assassinatos contra pessoas transgêneras, em especiais de travestis. Em uma sociedade transfóbica como a nossa, em que o imaginário que temos sobre as travestis se refere a tudo o que é marginal, como iremos pensar uma escrita transgênera? Ou mesmo uma interpretação e identidade transgênera: é possível que de fato exista homogeneidade na forma como nos identificamos, na relação que estabelecemos com a língua?
O que dizer quando travestis e transexuais reiteram o discurso médico patológico e recusam as outras possíveis identidades trans* dissidentes deste binário e o próprio termo transgênero? O que dizer quando apontam para uma suposta forma de significar o asterisco de trans enquanto imanência da língua? Repensemos, então, nossas próprias línguas de madeira e vento trans*. Se a língua de madeira peca por sua excessiva imutabilidade, a de vento não é menos problemática pelo fato de poder significar tudo e ao mesmo tempo nada. Tomar uma posição do “meio” muitas vezes soa igualmente suspeito.
De qualquer forma, temos que repensar nossas metáforas. Repensemos então acerca de uma possível língua de plástico, na qual os significantes se inscrevem de forma mais ou menos fixa ao mesmo tempo em que o seu suporte permite elasticidade e mobilidade. Ou mesmo em uma língua de vidro, na qual muito embora uma forma ganhe contornos aparentemente permanentes, há sempre a possibilidade de quebra, e com isso, a fundição a partir dos cacos em outra forma completamente diferente. Afinal, é assim mesmo o funcionamento de toda linguagem natural: ela parece transparente como um vidro, mas contém sempre pontos possíveis de rachadura. Uma língua estratégica enquanto tática política precisa reconhecer e utilizar seu caráter reciclável e maleável.