Por Beatriz Pagliarini Bagagli.
É preciso falar sobre a Resolução nº 2.265, de 20 de setembro de 2019, que revoga a Resolução anterior do CFM nº 1.955/2010. Isso significa observar as diferenças, muitas delas gritantes, nos discursos das duas. Observar a mudança histórica de sentidos ao longo de uma década sobre as transgeneridades na medicina brasileira que tem muito a ver com a luta pela despatologização, além de ser reflexo dela.
Certamente as notícias (G1, UOL) frisam que a nova resolução estabelece os cuidados para jovens menores de idade com bloqueadores hormonais, permitindo a utilização da hormonioterapia cruzada a partir dos 16 anos e cirurgias aos 18. Mas outras coisas são igualmente dignas de nota que passam batido das notícias, como a mudança de discurso de viés psicopatológico, a própria definição de transexualidade e a diminuição da idade mínima de acompanhamento 2 anos para 1 ano.
Em dez anos as coisas mudaram na medicina. Há dez anos atrás, a medicina brasileira designava os sujeitos transexuais em sua resolução que regulamentava o acesso a saúde de pessoas trans como um “portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou autoextermínio”. Isto foi simplesmente suprimido da nova resolução. É digno observar que esta designação encontrava-se como uma herança sucessiva de resoluções anteriores que ia sendo automaticamente incorporada ao longo das resoluções posteriores do CFM sobre transexualidade. A primeira vez que nos deparamos com essa designação patologizante sobre os sujeitos trans remonta à primeira resolução do CFM nº 1.482 sobre a questão, no ano de 1997.
Agora isso finalmente se interrompeu e pessoas trans deixam de serem portadores de “desvios psicológicos permanentes” e com “tendência ao autoextermínio” para serem simplesmente sujeitos que se identificam como homens e mulheres a despeito do fato de serem “nascidos com o sexo feminino e masculino” respectivamente. As seguintes definições sobre transexualidade na resolução de 2010 foram suprimidas:
Art. 3º . Que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados:
1) Desconforto com o sexo anatômico natural;
2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;
3) Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos;
4) Ausência de outros transtornos mentais. (Onde se lê “Ausência de outros transtornos mentais”, leia-se “Ausência de transtornos mentais”)
Na nova resolução não há, portanto, menção à essa suposta “exigência descritiva” em relação ao desconforto com o “sexo anatômico natural”; “desejo expresso de eliminar os genitais […]”; “permanência desses distúrbios […] por dois anos”. É curioso notar ainda que a resolução de 2010 apresenta entre parêntesis uma observação que retifica a própria menção a “outros transtornos mentais” para “ausência de transtornos mentais” – isto para não dar a entender que a transexualidade seria “mais um” transtorno mental.
Por outro lado, na nova resolução, há também menção a transtornos mentais que impedem o acesso a alterações corporais, mas eles são restritos aos “transtornos psicóticos graves, transtornos de personalidade graves, retardo mental e transtornos globais do desenvolvimento graves”. Este aspecto também difere da resolução anterior, pois até então o efeito de indistinção quanto aos transtornos mentais dava brecha para a inclusão de qualquer tipo de transtorno mental, seja grave, moderado ou leve.
Há a inclusão da definição da travestilidade na nova resolução, ausente até então na anterior, sinalizando a inclusão das travestis nos escopos do atendimento. Isso também é digno de nota, tendo em vista a negligência médica em relação especificamente às demandas de saúde das travestis, pois muitos médicos simplesmente se recusavam a prescrever hormonioterapia para aquelas pessoas que não desejavam realizar a cirurgia de redesignação sexual, por exemplo. A mamoplastia de aumento também é indicada para travestis nesta nova resolução, para além das mulheres transexuais, já incluídas em documentos anteriores.
Há menção de uma diversidade de identidades transgêneras que não encontramos na resolução anterior, que resumia-se apenas à transexualidade. A identidade de gênero passa a ser definida pelo reconhecimento da própria pessoa sobre o seu gênero, o que nos desloca também de posições patologizantes anteriores. Vejamos a nova definição:
Art. 1º Compreende-se por transgênero ou incongruência de gênero a não paridade entre a identidade de gênero e o sexo ao nascimento, incluindo-se neste grupo transexuais, travestis e outras expressões identitárias relacionadas à diversidade de gênero.
§ 1º Considera-se identidade de gênero o reconhecimento de cada pessoa sobre seu próprio gênero.
§ 2º Consideram-se homens transexuais aqueles nascidos com o sexo feminino que se identificam como homem.
§ 3º Consideram-se mulheres transexuais aquelas nascidas com o sexo masculino que se identificam como mulher.
§ 4º Considera-se travesti a pessoa que nasceu com um sexo, identifica-se e apresenta-se fenotipicamente no outro gênero, mas aceita sua genitália.
§ 5º Considera-se afirmação de gênero o procedimento terapêutico multidisciplinar para a pessoa que necessita adequar seu corpo à sua identidade de gênero por meio de hormonioterapia e/ou cirurgias.
Art. 2º A atenção integral à saúde do transgênero deve contemplar todas as suas necessidades, garantindo o acesso, sem qualquer tipo de discriminação, às atenções básica, especializada e de urgência e emergência.
Acho que seria muito esperar da medicina que usassem exatamente os mesmos termos que nós usamos, como “assignados juridicamente ao sexo feminino ou masculino”, já que a questão não é exatamente nascer com um sexo ou outro, mas ser assignado juridicamente a um ou outro com base em parâmetros de interpretação biomédica dos corpos. De qualquer forma, há uma mudança abissal entre uma resolução e outra. Entre uma resolução e outra vemos uma conceituação completamente distinta sobre o que é transexualidade, isso não é pouca coisa. Por outro lado, a definição de travesti como aquela pessoa que aceita sua genitália – dando a entender, portanto, que transexuais não a aceitam – acaba sendo imprecisa e também potencialmente problemática, justamente porque quebra com o paralelismo das definições de homem e mulher transexuais acima.
Na nova resolução vemos ainda menção à “intensa vulnerabilidade psíquica e social do indivíduo com incongruência de gênero ou transgênero”. Fala ainda de cuidado humanizado, singular e saúde integral. É dito que o PTS [Projeto Terapêutico Singular] será elaborado com a participação da pessoa trans ou com incongruência de gênero juntamente com os profissionais, o que difere de uma concepção passiva do usuário de saúde que apenas é conduzido sem opinar a respeito do seu próprio tratamento pelo saber médico e/ou profissional. Na anterior, por outro lado, vemos um endosso a perspectiva patológica que destoa da nova resolução, além de nenhuma menção a qualquer aspecto social.
Eu também me pergunto como essa diminuição do tempo de acompanhamento de 2 anos para somente 1 ano vai ser incorporada na prática. Porque o que vemos até agora é uma espécie de discurso circular repetido às vezes até à exaustão dos estabelecimentos de atendimento à população trans que justifica a espera desses 2 anos de acompanhamento porque a resolução do CFM assim ditava. Agora que não dita mais, irão automaticamente abaixar para 1 ano de acompanhamento?
Percebam que a mudança na prática não é exatamente automática, os médicos às vezes se habituam com certos discursos e vão fossilizando certas práticas sem antes se perguntarem as origens e razões delas. Acho que neste aspecto as pessoas trans terão que literalmente informar aos seus médicos, sejam do SUS ou do âmbito privado, a respeito dessa mudança e frisar o fato de que o tempo de 2 anos não é mais preconizado pelo CFM. Daí se esses médicos insistirem neste tempo de 2 anos, cabe o questionamento do porquê se apegam a este número, porque até então simplesmente justificavam que era “exigência do CFM”.
O Art. 7º me chamou atenção também quanto a um aspecto em particular. Sei de relatos de pessoas que moram no Rio Grande do Sul que informam para terem acesso aos cuidados médicos lá eram forçadas a trazerem seus parentes próximos nas consultas. Isso se torna completamente inviável para grande parte da população trans que é justamente rejeitada pelos seus familiares mais próximos. E estamos aqui falando de pessoas trans maiores de idade. Me lembro de ler o relato de uma mulher trans que teve o acesso a estes cuidados negados em virtude dessa exigência sem pé nem cabeça. Percebam aqui que os familiares da pessoa trans só poderão ser orientados mediante “autorização expressa do transgênero”:
Art. 7º Os familiares e indivíduos do vínculo social do transgênero poderão ser orientados sobre o Projeto Terapêutico Singular, mediante autorização expressa do transgênero, em conformidade com o Código de Ética Médica.
Por fim, gostaria de apontar para uma possível mudança no papel do psicólogo. Até então, rotineiramente lemos que a psicoterapia é praticamente indispensável e prescrita durante esses dois anos de acompanhamento. Na resolução de 2010 é descrita a composição da equipe multidisciplinar, dando a entender que o papel do psicólogo é simétrico e autônomo em relação ao do psiquiatra:
Art. 4º Que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo os critérios a seguir definidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto
Agora isso parece mudar significativamente, vejamos, respectivamente, o atendimento a crianças e adultos:
O psiquiatra inserido na equipe multiprofissional e interdisciplinar responsável por acompanhar a criança deve se ater a observar, orientar, esclarecer e formular diagnóstico e psicoterapia – quando indicada -, assegurando o desenvolvimento da criança com diagnóstico de incongruência de gênero. […]
O acompanhamento psiquiátrico será realizado por médico psiquiatra integrante de equipe multiprofissional. Caberá a ele formular diagnóstico, identificar morbidades, realizar diagnósticos diferenciais, prescrever medicamentos e indicar e executar psicoterapia, se necessário.
Ao lermos o Art. 5º, vemos que não há menção explícita ao profissional da psicologia nem ao da assistência social para compor a equipe multidisciplinar, o que difere da resolução anterior:
Art. 5º A atenção médica especializada para o cuidado ao transgênero deve ser composta por equipe mínima formada por pediatra (em caso de pacientes com até 18 (dezoito) anos de idade), psiquiatra, endocrinologista, ginecologista, urologista e cirurgião plástico, sem prejuízo de outras especialidades médicas que atendam à necessidade do Projeto Terapêutico Singular.
Parágrafo único. Os serviços de saúde devem disponibilizar o acesso a outros profissionais da área da saúde, de acordo com o Projeto Terapêutico Singular, estabelecido em uma rede de cuidados e de acordo com as normatizações do Ministério da Saúde.
Os “outros profissionais da área da saúde”, nos quais podemos incluir os psicólogos, podem ser requisitados, mas não parece mais haver uma exigência compulsória dessa participação. Isso dá margem pra interpretarmos que a psicoterapia não vai ser mais exatamente obrigatória, pois é prerrogativa do psiquiatra indicar a psicoterapia “se necessário”. Além de indicá-la, é o psiquiatra quem executa a psicoterapia. Há uma hierarquização entre os campos da psiquiatria e psicologia que não vemos exatamente formulada nas resoluções anteriores. Não sei exatamente como isso vai impactar na prática, ou o que exatamente significa uma subordinação, neste caso, da psicologia à psiquiatria.
O portal do CFM afirma neste sentido que:
O debate que levou à formulação do texto foi amplo e exaustivo. Além do plenário do CFM, contribuíram no processo representantes do Ministério da Saúde, do Conselho Federal de Psicologia (CFP), do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) e de diferentes sociedades de especialidades médicas que mantém interface com o tema, como psiquiatria, endocrinologia, cirurgia plástica, urologia e pediatria. Também foram ouvidas lideranças de movimentos sociais organizados que se dedicam ao assunto, bem como pais de crianças e adolescentes com diagnóstico de incongruência de gênero e gestores de hospitais que já realizam esses atendimentos.