Sobre crianças e doutrinação de gênero

Por Laura Dias.

Sobre crianças e doutrinação de gênero

Uma das coisas mais fáceis de se escutar da boca daqueles que se entendem conservadores, quando confrontados quanto à lgbtfobia embutida em suas convicções, vai nas linhas do, “mas eu não sou homofóbico, não tenho nada contra, mas a gente não pode influenciar as crianças…”

<<<as crianças>>>

É como se houvesse uma natureza primeira nos seres humanos: todos nasceriam homenzinhos-com-pênis desejando sexualmente mulherzinhas-com-vaginas, e vice-versa. Só depois – decididamente por motivos espúrios – é que alguns então escolheriam bagunçar essa ordem ao seu bel-prazer, negando assim, como me disse meu pai uma vez, essa sua “natureza”. O romantismo açucarado dessa ideia, que pretende buscar em uma noção de passado e infância seu modelo de perfeição, alinha a cisgeneridade e a heterossexualidade um ideal de pureza, de originalidade. Vendo as coisas nessas luzes, só faria mesmo sentido pensar em diversidade sexual e de gênero como algo apartado da “real natureza humana”, artificial, corrompido – aberrante. Subsidiando tudo isso está um julgamento de valor que pende fortemente em favor da heterossexualidade, da heteronorma comportamental e da cisgeneridade. “O resto é resto/sacanagem/invenção”, como ecoa nos comentários de Facebook em qualquer post falando sobre questões lgbt, sempre borrando as fronteiras entre a burrice, a ingenuidade e a má fé.

A política proposta parece então seguir contornos de, “você pode ser lgbt, contanto que nós possamos ter autoridade pare te educar e te criar dizendo que ser lgbt é uma aberração e te obrigando a se enquadrar nos papéis que decidimos que você terá que desempenhar por ter nascido com uma vagina/um pênis. Nós devemos ter a oportunidade de te humilhar, coagir, agredir e ridicularizar de diversas formas para te mostrar qual é a sua real e inata natureza. Caso, depois de tudo isso, você já não tiver se matado e quiser escolher ser lgbt, tudo bem, te ‘respeitamos’”

O que se pretende é, de fato, conservar um sistema de controle e coerção, onde diversidade sexual e de gênero não deve ser discutida afim de que se mantenha como tabu, como aberração, e afim de que permaneça intacto o status de natural da hetero-cisgeneridade.
O que se pretende é conservar as desigualdades que pendem em favor do cis-hetero. “As crianças” são uma mera ideia-refém desse senso romântico de uma natureza primordial que coincide com as antigas normas de família e gênero, servidoras de um certo sistema econômico e cultural. É um jogo de manutenção de privilégios.

O foco nas crianças dissimula uma defesa da permanência das pessoas lgbtq à margem. Que fique claro pra vocês – não é possível respeitar em qualquer nível uma pessoa lgbt e sustentar a crença de que crianças são “naturalmente” heterossexuais e cisgênero, sendo contudo possível “influenciá-las” num caminho “errado” caso você lhes permita descobrir o que deveria ser óbvio, a essa altura: ser hetero e cis, longe de ser o “normal”, não são mais que meras possibilidades de ser. Não há nada de inerentemente errado em ser queer, intersexo, lésbica, trans, assexual, gay. Boom!, quem sobreviveu?

A fantasia da “pureza inatista cis-hetero infantil” parece ser a forma mais facilmente vendável que encontraram para reafirmar que o natural, o correto mesmo é ser hetero e cis. Heterossexualidade e cisgeneridade compulsória que chama. Marginalização sistemática de pessoas lgbt.

Não tem o que discutir, está nas implicações.

O único real problema em ser lgbt está no problema que alguns cis-hetero têm com isso; toda a bosta em ser lgbt advém daí. Não é um problema nosso, vejam bem, é um problema deles. Seu maior fantasma é que fique explícito que ninguém é MELHOR que ninguém por ser cis ou hetero. Até eles entenderem isso, vão ficar dando trabalho.

Imagem: Quem defende a criança queer?, Revista Geni.


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