Texto de Caia Coelho.
Sobre “isso é só falta de informação” ou “intolerância com erro dos outros”
O erro é uma desobediência à regra. Isso faz dele inofensivo porque a norma seria capaz de regular, a partir das suas tutelas, quanto esse erro afetaria a sobrevivência da comunidade.
Por “normas”, não estou falando de leis, necessariamente. Embora também se aplique às leis, estou pensando no conjunto de regras e mensagens culturais utilizadas na maior parte das sociedades.
A violência hegemônica não é um erro.
No caso das leis explicitamente violentas, elas tomam suas proporções conforme vão sendo operadas por indivíduos que passaram a acreditar não apenas na eficácia da legalidade, como também que são os próprios legisladores da sociedade.
Na análise de Hannah Arendt sobre o julgamento de Eichmann, ela desenvolve o conceito de banalidade do mal porque percebe que há, nos atos dos operários do regime nazista, um mero cumprimento das ordens e normas vigentes, mesmo se as consequências dessa obediência fossem conhecidas.
“Assim como a lei dos países civilizados pressupõe que a voz da consciência de todo mundo dita ‘não matarás’, mesmo que o desejo e os pendores do homem natural sejam às vezes assassinos, assim a lei da terra de Hitler ditava à consciência de todos: “matarás!” (…). No III Reich o Mal perdera a qualidade pela qual a maioria das pessoas é capaz de reconhecê-lo: a tentação. Muitos alemães nazistas, a maioria deles, foram tentados a não matar, a não deixar seus vizinhos partirem para a destruição (pois eles sabiam que os judeus estavam sendo transportados para a destruição, é claro mesmo que a maioria deles não tenha sabido dos terríveis detalhes), não se tornarem cúmplices desses crimes, tirando proveito deles”.
Quando a autora, no contexto pós-guerra, reconhece o “não matarás” como a “lei dos países civilizados”, perdeu de vista um sentido oculto desse Estado que diz: “mataremos por você”.
Nesse momento da história, na maior parte do mundo, o genocídio deixa de ser uma pratica que conta com a colaboração direta da população, mas continua existindo, inclusive, com apoio dela, independentemente do acesso à informação ou do quanto é evidente as consequências desse apoio.
Num texto publicado no seu Facebook pessoal, Jota Mombaça fala de uma política da escuta que constitui o privilégio. Trata-se, para a autora, de um filtro bloqueando a possibilidade de reavaliação da contribuição do sujeito para as normatividades, mesmo em contato com argumentos e evidências que, em outros contextos, sensibilizariam até uma pedra.
“(Privilégio é), por definição, uma forma de ignorância – que não tem a ver só com falta de acesso a conhecimentos, ou falta de oportunidades de aprendizado, mas com uma série de convicções e práticas ocupadas na reprodução constante de uma escuta que visa negar (ou assimilar parcialmente) tudo aquilo que tem o potencial de problematizar esse estado permanente de não questionamento que garante a manutenção das posições de privilégio. Ou seja, a ignorância das posições privilegiadas não é de modo algum uma falta (de sabedoria, inteligência, consciência ou coisa do tipo), mas um procedimento ativo, uma forma de pensar e ver o mundo, uma ética e uma maneira de agir e relacionar-se. No limite, todo privilégio – para se manter intacto – depende da manutenção dessa ignorância, da atualização desse ponto-cego, e frente a isso, às vezes, não adianta mesmo argumentar, não adianta tentar conversar porque não há espaço para pensar junto. Nada disso é sequer sobre pensar. É sobre escutas impermeáveis, arrogância epistêmica, burrice premiada e autoestima delirante”.
Assim, a transfobia, o feminicídio e o racismo constituem-se como violências, não como erros.
São violências porque não descumprem as normas. Está estabelecido, entre o Estado e os sujeitos, um acordo sobre a operação da necropolitica. Ora essa operação é feita pelos sujeitos subordinados à norma, ora é feita pelo Estado e apoiada/demandada pelos sujeitos. Isso depende apenas de quanto é urgente domesticar ou aniquilar certos corpos.
Foi assim, por exemplo, no caso da Operação Tarântula, quando – em 80 – travestis prostitutas eram presas/torturadas/mortas para avaliação da sua “periculosidade” pela polícia. Após a suspensão dessa medida, a população se armou e passou, ela mesma, a torturar e assassinar as travestis em massa.
Portanto, me recuso a tratar transfobia, misoginia ou racismo com condescendência, como se fosse um erro inofensivo.
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PS: ÓBVIO que isso não é sobre o tiozinho na esquina me tratar no masculino. É sobre realmente quem tem acesso à informação (evidências e argumentos), mas não a usa para avaliar a própria postura. É como questionou a Gabriela Moura num artigo dela pro Le Monde:
“Quando falamos em racismo estrutural, precisamos lembrar que estruturas são compostas por indivíduos, e não lavar as mãos como se a palavra “estrutural” significasse um local distante, utilizado como um álibi. Para ilustrar o que digo, segundo pesquisa do Instituto Data Popular: 92% dos brasileiros afirmam haver racismo no país, enquanto apenas 1,3% se considera racista. Onde essa equação não fecha?”
Imagem: Cristo Rey (Dir. Leticia Tonos, da França).