Existe um caso de uma criança, designada ao nascer como menino, que teve sua genitália mutilada em um acidente logo quando era um bebê e foi criada “pra ser uma menina” (pela noção machista de que supostamente seria menos “traumático” a criança crescer como menina já que ela “perdeu o pênis” neste acidente) e por acaso essa criança se identificou, conforme foi crescendo, como menino/homem. Esta criança se chama David Reimer. Este caso é extensivamente ad nauseam citado como um exemplo anti ético de conduta médica e supostamente um chocante caso de “imposição de gênero”.
As pessoas costumam usar esse caso pra provarem que gênero supostamente não seria uma construção social. O problema é que a interpretação deste caso está profundamente calcada por um equívoco que naturaliza o gênero: se critica (justamente) o fato de David, que foi criado para ser uma menina e por fim se identificar como menino, ter sofrido em decorrência da quebra das expectativas desta imposição; contudo, tais críticas erram ao incidir apenas para o segundo desígnio de gênero, as expectativas relacionadas à “socialização feminina”, deixando intacto (naturalizado) o primeiro desígnio de gênero.
Este caso anedótico, na verdade, não prova nada sobre gênero ser inato ou não; ao contrário, este caso mostra como a violência de gênero para com pessoas trans é naturalizada. Por que crianças trans, meninos trans, não são vistos como David? Por que não há a mesma comoção contra a imposição de gênero para crianças trans? Cadê a indignação; ou melhor, porque indigna-se com o que houve com David e não as demais pessoas trans?
O fato de se identificar como homem ou mulher não depende da genitália, pessoas trans existem – apesar da nossa invisibilização. A identificação deste menino como menino não está mais fundada numa pretensa biologia do que a de qualquer outro menino trans ou pessoas trans. Mas há notavelmente uma diferença de interpretação gritante quando as pessoas discutem este caso em relação às demais pessoas trans. Há uma expectativa para que David, mesmo sendo criado para ser menina, se identifique como menino, ao contrário dos demais meninos trans. Porquê? O que faz as pessoas interpretarem a afirmação da identidade masculina de David como fruto de uma manifestação de uma verdade essencial da biologia e a sua “socialização feminina” como uma imposição fruto de uma mentira enquanto as identidades das demais pessoas trans não é vista como manifestação de uma verdade biológica e sim de uma espécie de engodo?
Há uma impressão socialmente construída de que seria mais esperado David se identificar como menino porque ele “nasceu com um pênis”; percebam, contudo, que esta impressão passa como se fosse manifestação de uma pretensa natureza, sendo que tal relação lógica, entre uma coisa e outra, só poder se constituir por meio de uma raciocínio que é socialmente e historicamente determinado. Tal raciocínio que estabelece esta relação de causa e consequência é fruto, neste caso, dos discursos que naturalizam o gênero como processo de subjetivação sem falha, baseado na cisnormatividade.
A singularidade do caso de David reside apenas no fato de que ele tenha recebido duas designações de gênero: a primeira, como menino (que durou pouquíssimo tempo, mas irá marcar profundamente a forma como as pessoas interpretam o seu caso), e a segunda, pouco tempo depois, como menina, em virtude do acidente; o equívoco reside no fato de que apenas o segundo desígnio seja visto em sua opacidade (ou seja, em sua violência, imposição), enquanto que o primeiro desígnio é naturalizado, visto como não existente porque é baseado nas evidências da cisgeneridade como processo pretensamente natural de subjetivação sem falhas e resistência.
O problema é que a interpretação do senso comum sobre esse caso vê o problema apenas no fato da David ser “socializado pra ser uma menina” na medida em que “na verdade” era um menino – somente pelo fato da criança ter nascido com uma genitália designada como “pênis” – ao invés de realmente criticarem que toda “socialização” de gênero ser uma imposição. Se de fato formos criticar a imposição de gênero às crianças, certamente muitas coisas deixariam de ser socialmente aceitas na criação de crianças. Se a crítica ao caso de David fosse de fato levado à sua radicalidade, teríamos que mudar muitas coisas, e a forma como vemos muitas coisas relacionadas ao gênero e a identidade das pessoas trans.
Se as pessoas acham que o que aconteceu com essa criança é um abuso, então somos todos abusados e em especial, as crianças e pessoas trans. Pessoas trans estão aí, a luz do dia, recusando a socialização mas ninguém diz que a socialização de todos nós, que não sofremos nenhum “acidente” em nossas genitálias (e por isso, não temos “permissão” para frustrar essas expectativas arraigadas sobre a cisgeneridade); ninguém diz que os abusos perpetrados contra crianças e adultos trans pelo fato de rejeitarem a socialização cisgênera (o gênero esperado a partir do desígnio ao nascer) se trata de um caso antiético ou de engenharia social bizarra: ao contrário, se trata de mero fruto da natureza; os bullyings, as negações de direito, as tentativas de cura em rumo a normalidade, as expulsões familiares, escolares, do trabalho… No caso de David isto é visto como violência, mas nas demais pessoas trans é fruto da normalidade da transfobia social.
É como se David, pelo mero fato de ter sido designado ao nascer como menino, obtivesse mais legitimidade para afirmar sua masculinidade do que um menino/homem transgênero – já que os outros homens trans não teriam uma desculpa que poderia se fundar em algum argumento que mobilizasse algum objeto biológico. David gerou empatia na população cisgênera porque é como se ele de fato estivesse retornando a uma suposta normalidade com base num pretenso “passado biológico” que tivesse inscrito em algum lugar de sua constituição identitária e portanto desvelaria uma suposta verdade… percebam, contudo, que o teor “biológico” não pode falar por si mesmo, ele só tem significado de pretensa verdade na medida em que as pessoas têm socialmente legitimado o gênero em sua posição cis. O que é designado como funcionando como “biológico” é desde sempre imaginário.
O fato das pessoas verem que a socialização de gênero ser uma violência APENAS para com uma criança que “perdeu seu pênis e foi socializada pra ser uma menina” demonstra como as pessoas naturalizam o destino da cisgeneridade – e nesta medida, naturalizam as violências de gênero contra pessoas trans. A criação deste menino para ele ser uma menina não difere em nada das possíveis experiências abusivas que homens trans podem passar, por exemplo. Mas quando se trata de pessoas trans, a interpretação hegemônica difere radicalmente: é como se nós pessoas trans estivéssemos indo contra uma suposta verdade inscrita nos genitais, por isso pessoas trans “mereceriam” sofrer tais abusos; ao contrário de David, é como se houvesse uma direção diametralmente oposta ao “engodo” da transgeneridade, o menino (“verdadeiramente” menino porque “nasceu com pênis”) está rejeitando a socialização feminina imposta (uma socialização vista como falsa e violenta APENAS pelo fato de ter ocorrido um segundo desígnio de gênero causado com uma mutilação que é visto, por isso, como um “falso desígnio”). Apenas por este segundo desígnio de gênero ser considerado “falso” que as pessoas podem empatizar com David e acharem que tal desígnio configurou uma profunda forma de violência – sendo que, na verdade, todo desígnio de gênero é socialmente fundado e a expectativa de que as pessoas irão segui-lo sem nenhuma falha ou resistência já configura em si uma terrível violência contra todas as pessoas trans..
De fato, toda socialização de gênero é imposta e violenta, por mais que tente parecer natural com base na cisgeneridade. Se o menino em questão tem legitimidade de reivindicar uma identidade masculina, todas as pessoas trans também deveriam ter legitimidade em afirmarem suas identidades que fogem das expectativas criadas pela socialização. Toda “socialização” é uma imposição, e o fato de que ela não seja vista como uma imposição na constituição do sujeito cisgênero decorre do fato de que a cisgeneridade seja naturalizada por meio de discursos, que são constituídos através de processos históricos e sociais.
O fato de David ter nascido com um pênis e só por conta disso achar que ele teria resistido à socialização feminina é um erro. Ele resistiu a este desígnio para ser menina não porque ele na sua “verdade essencial” era um menino, mas sim porque a transgressão de gênero ser uma possibilidade existencial para pessoas trans. Homens trans resistem à “socialização feminina” sem terem nascido com genitais designados como pênis, assim como mulheres trans resistem à socialização masculina sem terem nascido com genitais designados como vulva. Se fosse a questão de sustentar uma hipótese contrária, homens e mulheres trans simplesmente não deveriam existir. E homens trans e mulheres trans, existem, sofrem os mesmos abusos, estão expostos às mesmas vulnerabilidades existenciais que David sofreu, e nem por isso as pessoas conseguem visualizar o teor violento desta socialização para com pessoas trans. Isso só desvela que a violência para com pessoas trans é naturalizada, até mesmo esperada. Este caso desvela como a empatia pode ser profundamente seletiva tendo em vista processos sociais de interpretação.
O equívoco destas interpretações é que elas só veem abuso porque o menino foi criado para ser uma menina porque ele “perdeu seu pênis” – e assim, teria algum suposto vínculo essencial com a identidade masculina. As pessoas só conseguiram ter empatia pelo sofrimento desta pessoa porque o seu destino originalmente traçado para ser um menino cisgênero foi frustrado por um acidente no seu genital. Só houve empatia aqui em virtude desta frustração inicial despertada pela mutilação no genital logo quando ele era um bebê.
O caso de David Reimer não nos prova (nem desmente) se gênero é inato ou não, ou em que medida o gênero seria mais ou menos inato. O caso de David pode servir para, ao contrário, questionarmos o teor violento das expectativas de gênero que impactam na vida de absolutamente de todas pessoas e em especial, das pessoas trans – independentemente do genital que elas tenham. O caso de David pode nos servir para o desvelamento do funcionamento da transfobia, ou seja, da importância de se defender perspectivas de que ninguém deveria ser obrigado ou constrangido para ser menino/homem; menina/mulher, com base nas expectativas de um pretenso processo de subjetivação pela cisgeneridade sem falhas. Afinal, este processo possui falhas e nós estamos aqui para provar, diante nossas existências que desafiam a cisnormatividade. David se identifica como menino não por uma pretensa verdade inscrita no seu passado biológico que teria uma ligação unívoca com sua identidade, mas sim pelo fato de não existir nenhum destino inexorável que o levaria obrigatoriamente a se identificar como uma menina.