Sobre o uso do banheiro, direitos fundamentais e uma audiência pública

Texto de Lívia Franco. Publicado originalmente em 6 de outubro de 2016.

Na última terça-feira, estive em uma audiência pública sobre uso de banheiros por pessoas trans e travestis no campus de São Bernardo do Campo da Universidade Federal do ABC (UFABC-SBC). Pois é, pleno século XXI e algumas pessoas acham mesmo que precisamos debater e negociar o direito de seres humanos atenderem a suas necessidades fisiológicas em banheiros públicos com segurança, sem colocar em risco a sua integridade física, moral e psicológica! Mais um evento que busca a sua negação, ou seja, o dia em que não será mais necessário convocar uma audiência pública para se discutir um tema como esse.

De tudo o que foi falado, e não foi pouco, com direito a uma exposição brilhante (ou melhor, algumas) de Neon Cunha, gostaria de destacar e questionar um trecho da fala com que a coordenadora do núcleo de direitos humanos da Pró-Reitoria de Assuntos Comunitários e Políticas Afirmativas (PROAP) e professora de gestão de políticas públicas pretendeu encerrar a mesa.

Empregando termos como “exceção”, que não pude deixar de rebater alertando que não estávamos ali para discutir reivindicação de privilégios ou de tratamento especial, mas de um direito, a docente fez questão de enfatizar o caso da funcionária travesti terceirizada perseguida por usar o banheiro feminino nas dependências da universidade – o que deu ensejo à convocação da audiência – e tentou se esquivar com um discurso à la “em terra de papel higiênico pouco, meu cu primeiro” ou “em terra de riscos, minha nomeação por último”, bem ao estilo dos políticos brasileiros que já cansamos de ver rifarem direitos da população trans para se manterem no poder.

Começou sua fala observando que, ao contrário do que muitos haviam pensado a princípio, a audiência não tinha por finalidade funcionar como um tribunal ou impor como sentença uma única “opinião” ou perspectiva sobre o tema, mas promover uma troca de ideias saudável sem apontar como certo ou errado o uso por pessoas trans e travestis do banheiro condizente com o gênero com o qual se identificam, um equívoco ao qual integrantes da mesa como Magô Tonhon e Carolina Gerassi fizeram menção de se opor, observando que “direitos humanos fundamentais não podem ser condicionados” e que não estávamos ali para uma simples troca de ideias ou para debater nada, mas para conversar, já que não havia nada a ser debatido ou negociado ali e não compactuaríamos com nenhuma via que viesse a privar pessoas trans e travestis de qualquer direito – “nenhum direito a menos!” Imaginem onde estariam os negros se ainda estivessem consultando os brancos sobre o que eles acham de dividir assentos no transporte público, nas escolas, nas universidades, no mercado de trabalho…, não é mesmo?

Se é que, mesmo diante dessas falas, a direção da UFABC-SBC e da PROAP ainda não entenderam, esclareço: oprimir, perseguir, excluir, segregar e privar pessoas trans do convívio em comum não constituem liberdade de expressão, liberdade de manifestação ou direitos fundamentais.

A coordenadora prosseguiu retorquindo que, numa condição ideal, realmente não precisaríamos debater direitos humanos, mas que é preciso recorrer a uma reflexão que ela sempre propõe a seus alunos: “será que, mesmo passada a ditadura, vivemos de fato num Estado de Direito?”

Não podendo me conter na condição de ouvinte passiva em que alguns esperavam que eu me mantivesse, questionei na ocasião e repito: só porque vivemos num Estado de Direito de fachada, vamos corroborar a violação a direitos humanos no interior das universidades também? E, agora, tenho a oportunidade de completar: afinal, de que serve essa tal autonomia universitária se nem para assegurar o respeito a direitos fundamentais nas dependências da própria universidade ela presta?

Mas a cereja do bolo ainda estava por vir com as perguntas que se seguiram: como fica a responsabilidade da universidade diante de tudo isso? Como a universidade vai fazer frente às reclamações de pais e alunos que podem entrar com processos em cima dela?

Não sei quanto às exigências do processo seletivo da UFABC, mas, quando prestei Fuvest, um dos critérios que poderiam desclassificar sumariamente um candidato era a apologia à violação de direitos humanos na redação. Isso quer dizer que a USP se propunha selecionar seus potenciais estudantes avaliando não apenas o seu conhecimento, mas o seu compromisso com a garantia e a promoção dos direitos humanos. Colegas professores universitários ou que possuem pretensão a sê-lo algum dia, por favor, me esclareçam uma dúvida: nos concursos para docentes exigem o mesmo, não?

O que os inúmeros e recorrentes casos de violações desses direitos que, recentemente, têm alcançado a grande mídia – estupros na Faculdade de Medicina, o ranking da misoginia e do racismo na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (ESALQ), incentivo ao ódio e à intolerância transhomofóbica na Faculdade de Ciências Farmacêuticas, para citar apenas alguns deles – e a relutância em apurá-los provam é que falta às universidades adotarem uma postura coerente e implementarem medidas que efetivamente assegurem esses direitos, ao invés de insistirem na hipocrisia de posar como um espaço no qual imperam o diálogo e a tolerância e como um ambiente livre de opressões quando estão repletas delas.

Se a mulher cisgênera que deu início a toda essa discussão na UFABC-SBC espalhando aos quatro cantos que “um homem” estava usando o banheiro feminino e todas as pessoas que, como ela, continuam a se opor ao direito básico de pessoas trans e travestis atenderem a suas necessidades fisiológicas num banheiro condizente com o gênero com o qual se identificam tivessem o mínimo de perspicácia, perceberiam que a divisão dos banheiros para nada mais serve senão proporcionar alguma segurança a uma parcela da sociedade perante outra que insiste em manter e perpetuar privilégios instituídos pelo machismo, como a suposta incapacidade masculina de conter seus impulsos diante de uma mulher, que existe, segundo essa lógica, para servir o homem. Se dariam conta de que essa divisão é apenas mais um atestado da incompetência, mais um lembrete do nosso fracasso no combate ao patriarcado e à desigualdade de gênero

Diante da finalidade dessa divisão, é ainda mais revoltante constatar que algumas mulheres cisgêneras não consigam ser empáticas e sequer enxergar os riscos a que estão expostas mulheres transexuais e travestis no banheiro masculino. Mas, infelizmente, é como Paulo Freire disse: “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”!

Não, a minha indignação não se dirige apenas ao fato de que proíbam pessoas trans e travestis de usarem os banheiros destinados aos gêneros com os quais se identificam. Minha maior indignação é constatar que seres humanos ainda sejam incapazes de respeitar as diferenças e precisem dessa divisão para coexistir e se relacionar uns com os outros com alguma civilidade!

E quanto aos questionamentos da coordenadora do núcleo de direitos humanos da PROAP, creio que a UFABC tenha duas escolhas: ou ela não dá ouvidos às demandas dos pais dos alunos, afinal eles não podem se intrometer na vida acadêmica dos filhos, que, muito provavelmente, são maiores de idade, e convida esses alunos a adotarem, ao menos nas dependências da universidade, uma postura coerente com o compromisso de respeitar os direitos humanos que firmaram desde que se inscreveram no vestibular, ou ela pode enfrentar uma ação trabalhista e uma ação coletiva do conjunto de pessoas trans e travestis já historicamente marginalizadas e que não vão mais engolir precarizações caladas. Como professora de gestão de políticas públicas, confio no seu juízo para ponderar qual dessas alternativas é mais danosa para a universidade e para o público que ela existe para servir.


Publicado

em

por