Texto de Laura Leanora Dias.
“Queriam-me mulher comum, donzela entre suspiros a cozer o enxoval. Virgem e prendada.
Idealizaram-me ante um corpulento vigário, repetindo decorebas e prometendo submissão. Folhas de laranjeira e ‘até que a morte os separe.’
Aah, queriam-me.. Abrindo as pernas em quando e vez, e prenha de vez em quando. Sorriso amarelo sempre. Moldaram-me fábrica de homens viris, castrada do prazer e vontades, da voz e opinião. Objeto direto do verbo ‘calar’.”
Parte de um texto lindo, que escutei num vídeo. Nem sei se é prosa ou verso e desconheço a autoria, pois não achei nada buscando online.
O que ele diz me pegou forte, tanto pela linguagem que emprega quanto por conta do que fala. Me trouxe um insight em forma de conflito e solução simultaneamente.
Eu entendo que o feminino, mesmo que atualmente pensado como não necessariamente vinculado a essa figura de mulher que se define por submissão, tem nela a sua base. E eu falo aqui do feminino como ideal, fonte de padrões comportamentais, estéticos, etc. Entendo também que a própria experiência da mulheridade, quando não diretamente vinculada ao ideal de mulher de que fala o texto – caso das mulheres cis – reverbera enquanto modelo comportamental e estético – ora imposto, ora almejado – na experiência de mulheres trans e pessoas transfemininas*.
É nesse ponto que começa minha brisa pessoal. Não é mais novidade pra mim que, mesmo enquanto transfeminina e não-binária, ocupo algum lugar de mulher na sociedade e na minha subjetividade. No entanto, ser transfeminina é ocupar esse lugar de uma forma bem mais fugidia e imprecisa que mulheres cis, e isso não deixa de produzir conflitos dentro de você. Particularmente quando sua transfeminilidade é uma colcha de retalhos que não reproduz o discurso cisnormativo de autenticidade trans – aquele bem linear do “sempre”, do passado remoto, do “desde criança”.
Eu não vejo a minha história nesse texto citado. Esses dias, li que as mulheres são criadas para serem mães e isso se instalou na minha mente. Eu não fui criada pra ser mãe. Ser transfeminina é existir como mulher num presente que nem sempre tem um passado (ao menos não um passado nos conformes da cisnorma). Mesmo um discurso rad/fundamentalista dos mais chinfrins adora se valer dessas diferenças de formação para tentar invalidar a mulheridade de pessoas transfemininas.
Há tempos tentando conciliar essas ideias, a conclusão à que eu cheguei foi que tais diferenças, por mais fundamentais que sejam na formação subjetiva de cada um, não são categóricas – não determinam a categoria “mulher”. Essas diferenças não fazem mais que determinar formas distintas segundo as quais se constituem as diversas feminilidades/mulheridades. Eu tenho pensado que a diferença para pessoas afab* e amab*, quanto a uma generidade feminina, está no fato de que o que paras as primeiras é imposto, para as segundas é proibido – e é desse jogo de interdições e da relação que estabelecemos com as imagens que esse ideal de mulheridade projeta que se constituem as experiências de transfeminilidade. De qualquer forma, é crucial compreender que, ainda que a feminilidade de pessoas transfemininas se constitua e se articule de modos diferentes dos das feminilidades cis, isso não a desqualifica. Não há uma forma específica que garanta a autenticidade das existências femininas que tais constituições e articulações produzem. Isso é o que prega a cisnorma, e a própria existência de pessoas trans demonstra a fragilidade dessa norma.
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É então que me lembro mim mesma, deitada sem roupa na cama; me olho no espelho e me reconheço como o que eu sou – uma pessoa transfeminina, uma garota transfeminina. Meu corpo passa a fazer sentido por assumir sentido próprio, não mais dependente do referencial de sentido dos corpos cis para ser inteligível e entendido. Ele FAZ sentido. Produz, cria, é um corpo grávido de sentido.
De uma forma mágica, esse texto me leva a melhor me reconhecer plena como transfeminina, e a minha transfeminilidade como algo concreto.
*Pessoa transfeminina: pessoa trans que, tendo sido designada homem ao nascer, se constrói subjetivamente na feminilidade. O termo transfeminino abarca tanto travestis, mulheres trans e pessoas trans não-binárias. Também pode ser articulado como identidade em si mesmo.
*afab – pessoas designadas mulher no nascimento (sigla a partir do Inglês ‘assigned female at birth’)
*amab – pessoas designadas homem no nascimento (‘assigned male at birth’)
Imagem: Andréa Magnoni, exposição “Flores e Cores para Tita”. Via Neto Lucon.