Por Beatriz Pagliarini Bagagli.
Li um texto excelente e muito interessante de Devon Price chamado “‘Female Socialization’ is a Transphobic Myth“. Trata-se neste caso da perspectiva uma pessoa transmasculina, que entrou em sintonia com várias coisas que eu já escrevi sobre o tema da “socialização”.
Devon faz uma reflexão bem interessante a partir de algumas conversas que ele fez com uma professora que estava reclamando sobre como os seus alunos não a levavam suficientemente a sério pelo fato dela ser mulher cis, sobre como ela se sentia, por ser mulher, que tinha que se esforçar mais do que o necessário para que as pessoas a levassem a sério. Devon percebe que essa experiência não batia com a dele, já que as pessoas simplesmente o levam a sério normalmente.
Esse exemplo na verdade pode parecer meio bobo ou banal demais, mas ele serve pra ilustrar algo que é muito recorrente em debates feministas (particularmente em contextos de discursos feministas radicais trans-excludentes) a respeito de vivências trans: mulheres cis supõem frequentemente que homens trans vivenciaram as mesmas dificuldades que elas, sendo que isso nem sempre é verdade (aliás, eu poderia inclusive dizer que muitas mulheres cis, inclusive feministas, não iriam compartilhar da mesma experiência de “não ser levada a sério como professora”, ou, pelo menos não iriam necessariamente narrar e simbolizar da mesma forma, afinal, as vivências não são homogêneas, existem muitas variáveis e intersecções; não existe homogeneidade na forma como interpretamos supostamente uma mesma vivência, e a forma como narramos/interpretamos uma vivência também, em certa medida, influencia no que ela de fato seja). Da mesma forma, muitas feministas cis (principalmente se forem radfems) supõem que as vivências delas vão ser absurdamente ou essencialmente diferente das de mulheres trans – quando na verdade são muito mais semelhantes do que elas imaginam.
Sim, de fato, homens trans e mulheres cis podem concordar sobre o fato de compartilharem algumas experiências relacionadas/decorrentes do fato de terem recebido o gênero feminino ao nascerem e serem “socializados/as” como meninas. Mas acontece que existe um viés aí: as supostas semelhanças tendem a serem exageradas em função deste desígnio, enquanto que as semelhanças e coincidências de vivências entre mulheres trans e cis, de um lado, e entre homens trans e cis, do outro, tendem a serem espontaneamente e previamente desconsideradas precisamente em função da cisnormatividade que concebe o gênero das pessoas trans como falso ou inautêntico.
No texto de Devon ele também relata que mesmo quando era visto aparentemente como mulher ele não era “cobrado” das mesmas coisas que costumam ser “cobradas” (ou “esperadas”) de um “script” sobre “ser uma mulher normal”. Acho esses insights muito interessantes, inclusive agora para apontar para semelhanças entre as próprias pessoas trans, homens ou mulheres trans, mesmo antes da transição – levo aqui em consideração que muitas pessoas trans mesmo antes da transição podem ter uma expressão de gênero que não coincide com o gênero assignado.
Acredito que isso interfira na forma como as pessoas nos enxergam e nos tratam: não faz muito sentido você perguntar para uma pessoa que você lê como uma “lésbica masculina”, por exemplo, se achou determinado homem bonito em um contexto de sugestão romântica, enquanto seria esperado de se perguntar para uma moça presumidamente hétero. Devon conta que ele não foi igualmente pressionado em relação ao script da expectativa por casamento, por exemplo, da mesma forma como sua irmã foi – e eu imagino que isso se dê muito em função do fato dele já não corresponder às normas de gênero, mesmo antes da sua posterior transição.
O mesmo eu diria para vivências transfemininas, sobre o fato por exemplo das pessoas não fazerem as mesmas perguntas que eu já vi serem relativamente comuns de serem feitas para meninos presumidamente cis-héteros – justamente porque pressupõem a heterossexualidade: “e as namoradinhas?”.
Não faz muito sentido você perguntar isso para um moço que você presume ser gay (ou melhor, presume ser gay porque ele é feminino), por exemplo, então as pessoas não costumam fazer perguntas análogas para não constrangerem ninguém – afinal, presumir a não heterossexualidade de um jovem adolescente que nem pensou em “sair do armário” ainda pode ser visto como algo no mínimo “constrangedor”, então isso é simplesmente e espontaneamente silenciado. Muitas interações cotidianas são orientadas em função do que assumimos a respeito do gênero e sexualidade das pessoas, o que redunda em dizer que nos orientamos em muita medida pelas normas, muitas vezes tácitas, de gênero cisheternormativas – e isso é particularmente verdadeiro quando ainda somos bastante jovens.
Tudo isso parece na verdade muito cotidiano e banal, mas são considerações relevantes de serem apontadas quando vemos tão frequentemente uma noção de socialização de gênero homogênea e universal em que supostamente as pessoas trans e de gênero diverso compartilhariam automaticamente e da mesma forma com as pessoas cis, como se tudo fosse determinado pelo gênero assignado ao nascimento (homens cis teriam as mesmas “experiências” de mulheres trans pelo fato de terem o gênero masculino designado ao nascimento; e o mesmo com mulheres cis e homens trans, tendo em vista a designação de gênero feminino; socializações “masculinas” e “femininas” seriam diametralmente opostas, essencialmente distintas e auto-excludentes, sem pontos de contradição e intersecção entre ambas).
Diante dos atos aparentemente tão pequenos, sobre não recebermos as mesmas perguntas que pessoas cis e hétero recebem em interações cotidianas, percebemos que as “socializações” nunca foram as mesmas, nem entre nós nem entre as próprias pessoas cis-hetero, precisamente porque desde o princípio todos nós somos de fato capazes de percebemos as diferenças que nos marcam e marcam as demais pessoas.
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Crescer sendo trans: insights para realmente compreender a socialização
Imagem: Tim Mossholder.
Comentários
Uma resposta para “Socialização de gênero: as experiências são sempre as mesmas?”
Parabéns pelo texto! É um tópico muito importante, e que precisa ser debatido mais por perspectivas mais críticas, principalmente de pessoas cisdissidentes.
Minha única pontuação é sobre o tratamento usado para Devon: essa pessoa não usa os pronomes he/him, apenas they/them. Portanto, tratá-le por o/ele/-o (nosso equivalente de he/him) está incorreto e desrespeitando sua própria identidade. Peço que se atentem mais a isso; afinal, é um site sobre transfeminismo. Sobre a adaptação de they/them, há quem use a “neutralidade” ainda dentro das normas, que seria evitando marcação de gênero sempre que possível. Porém, eu indico mais o uso de neolinguagem, como artigo ê, pronome elu, e desinências com -e; pois as normas vigentes não são capazes de respeitar existências não-binárias, e o que pode ainda ser usado dentro delas apenas coloca essas existências num estado de indefinição (como se isso fosse inclusivo ou suficiente). Apenas isso. Obrigade pela atenção.