Socialização de quem, cara pálida?

Vemos afirmações paradoxais de feministas radicais tais como “transexualidade não existe” ou “pessoas trans não existem”. Isso porque, segundo este discurso feminista, a realidade do gênero se refere tão somente a socialização enquanto formas de aculturação do gênero de homens e mulheres cisgêneros. Mas a dúvida paira no ar: de que socialização estamos falando, cara pálida? Como pessoas trans são de fato “socializadas”?

Vemos, na verdade, um encobrimento ideológico atuando através de um desdobramento de uma epistemologia espontânea da cisgeneridade como forma de escamoteamento do real da transgeneridade (ou do próprio real do gênero). Isso se dá na medida em que se tenta negar a existência material de pessoas trans*. E negar a nossa existência através de uma pretensa articulação da teoria feminista não se restringe à abstração teórica. Seria igualmente inteligível (ou eticamente aceitável) uma teoria que tenha por premissas teóricas de que “raça ou pessoas negras não existam” ou de que “homossexualidade e pessoas homossexuais não existam”? Por que, então, isso é aceitável quando falamos de transgeneridade?

O discurso feminista radical irá entender a “socialização” na medida em que toma como pressuposto apenas a existência real de homens e mulheres cisgêneros. Ou seja, a socialização, enquanto forma normativa de atribuição de gênero aos sujeitos enquanto conceito analítico consegue ter acesso em parte ao real do gênero e sexo.

Mas será que esta perspectiva consegue ter acesso ao real da transgeneridade? Minha resposta é negativa. Ou seja, quero dizer que o feminismo radical não “quer” (e não pode, dada a sua própria constituição enquanto discurso) “dar conta” politicamente deste real. Por isso o simbólico é interdito em regiões estratégicas, dada uma relação com um imaginário acerca de pessoas trans*.

Esta recusa ou ensurdecimento às questões transgêneras no feminismo radical se dão na medida em que o real da transgeneridade ser o ponto no qual a teoria sobre socialização proposta pelo feminismo radical falha. E por falhar, o feminismo radical terá que tamponar o furo da sua própria teoria. Contudo, este tamponamento não consegue um encobrimento inequívoco. O real da transgeneridade insiste em voltar e atormentar, dados os equívocos do sexo.

Como já disse em outros textos, um dos sinais (ou sintomas) do furo desta teoria radical se dá na incapacidade de entender socialização como forma de interpelação ideológica do gênero pela contradição. Ou seja, trata-se da recusa da própria materialidade do sexo enquanto forma contraditória. Apagamento, portanto, da própria historicidade desta teoria, o que nos mostra o comprometimento do feminismo radical com o idealismo.

O que considero de mais fulcral deste furo discursivo é quando ele se materializa na concepção do indivíduo trans* não como um sujeito assujeitado do gênero, mas um indivíduo que conscientemente “muda” ou “performa” (simulacro das proposições teóricas de Judith Butler) um gênero. Ao contrário, a teoria, se se propõe materialista e, portanto, se se propõe estudar o assujeitamento ao gênero (ou socialização) deverá compreender como nenhum indivíduo escapa a esta determinação. Ou seja, tanto pessoas cis quanto trans* não estão (igualmente) livres/assujeitadas ao gênero. O que proponho teoricamente é entender a cis+trans+generidade como desdobramento de uma mesma discursividade do gênero para assim entender as formas históricas de determinação do sujeito (a forma-sujeito histórica do gênero em nossa sociedade). Trata-se, portanto, de compreender as determinações históricas tanto do sujeito cis quanto do sujeito trans*.

Uma forma bastante curiosa deste tamponamento operado pelo feminismo radical do real do sexo vai se dar partir da invocação um certo imaginário sobre pessoas trans*. Este imaginário, por sua vez, a partir de uma posição discursiva, irá ser simbolizado na prática e teoria do feminismo radical (ou seja, será textualizado politicamente). Vale dizer, contudo, que tanto o imaginário quanto o simbólico são vias de acesso ao real: não são, portanto, o próprio real. Por isso o tamponamento da teoria radical insiste em vazar. Qual é o real da transgeneridade que insiste em irromper, rachando esta teoria?

Duas imagens de mulheres trans* são acionadas pelo feminismo radical: primeiro, o imaginário sobre o indivíduo branco de classe média que é imaginariamente entendido como “um homem cis privilegiado que se assume conscientemente mulher trans para deliberadamente obter algum proveito da feminilidade”. Aqui a rede parafrástica irá ligar a imagem de mulher trans* a homem, e homem, por sua vez, é imaginado como aquele que “estupra, é misógino, tem privilégios masculinos, etc”. Ou seja, por inúmeros deslizamentos metafóricos se concebe imaginariamente a mulher trans* como um homem opressor. Para esta discursividade, homens são sempre opressores (já que assim foram socializados) e mulheres trans* seriam homens. Outra imagem igualmente recorrente é da mulher trans* que “reproduz estereótipos de gênero”. Enquanto que a primeira imagem se aproxima da figura masculina, a segunda imagem se aproxima da figura feminina. Novamente por deslizamentos metafóricos, uma “mulher trans que reproduz estereótipos de gênero feminino” é vista como uma má sujeita. Isso porque “reproduzir estereótipos de gêneros” sendo um “homem-mulher trans” é visto como uma prática “misógina”. Todas estas formas de significar “mulher trans” são articuladas como argumento de que estas pessoas não fazem parte do movimento feminista (o que também toma como pré-construído, portanto, de que homens não façam parte do feminismo).

Resumidamente, estes imaginários que circulam sobre mulheres trans* se dão em relação com a ideologia. Eles circulam socialmente, e dada uma determinada posição discursiva/formação discursiva, há um recorte mais ou menos estratégico (a forma como uma posição de sujeito lida com a heterogeneridade discursiva, uma competência discursiva, diria Dominique Maingueneau) deste imaginário que passa a ser simbolizado a partir de sua relação com o político. A ideologia, representada pelas diversas formações ideológicas, forma um todo complexo com dominante contraditório, e a língua (ou o simbólico) só significa pela sua ligação material com a história. Com isso quero dizer que, dada sua relação com a ideologia, o imaginário comporta a categoria da contradição e com isso pontos de derivas de sentidos. Com isso poderemos vislumbrar uma outra forma de simbolizar este real do gênero/ transgeneridade, ou seja, a partir de uma posição transfeminista. Posição esta que, justamente por levar em conta a categoria de contradição, irá apontar para as falhas de como este imaginário sobre mulheres trans* é articulado politicamente e trabalhar na contradição, e não apesar dela.

De cara, voltando ao parágrafo que descrevo os imaginários sobre mulheres trans*, percebemos inúmeros furos e contradições. Um homem cis é uma mulher trans*? Todos os homens são necessariamente misóginos pela socialização e privilégios que recebem? Uma mulher trans* escolhe conscientemente ser uma mulher enquanto que pessoas cis não escolhem? Se dizer mulher trans* em uma sociedade transfóbica de fato “compensa” algum suposto “benefício”? O feminismo radical pode suportar a afirmação de que uma mulher trans* poderia se beneficiar da feminilidade sem colocar em cheque seus próprios pressupostos teóricos sobre o gênero? Mulher trans* é a única que reproduz estereótipo de gênero? Não vou me ater a responder a estas perguntas, o que quero atentar é para o impensado que o imaginário comporta. A primeiro momento, poderíamos nos iludir com uma pretensa completude destes sentidos. Mas a completude é, ao contrário, um efeito ideológico.

Este efeito ideológico de completude que subjaz o imaginário sobre mulheres trans* pelo feminismo radical, como já disse, não é neutro, obviamente. Ele visa, sobretudo, apagar o real da transgeneridade. E o real mais marginal é o mais vulnerável de ser silenciado. Digo: sobretudo das travestis. As travestis não se comportam imaginariamente no discurso do feminismo radical. São sujeitas terríveis, em diversos aspectos. Escapam da teoria de forma selvagem. Mas são terríveis não apenas por serem travestis, mas também por serem negras, pobres e prostitutas. Párias da sociedade brasileira, o país em que mais se assassina pessoas trans* no mundo. Bruxas contemporâneas cujas expectativas de vida não vão além dos 35 anos. Excluídas das excluídas, do real e das formas políticas de representação. Mas elas continuarão a resistir, a clamarem sentidos para suas existências. O imaginário do “homem cis privilegiado” não suporta o imaginário que temos das travestis. O real volta incessantemente clamando por sentidos. São travestis socializadas como travestis. E os sentidos que simbolizam politicamente o real das travestis, podem ter certeza, não é nem um pouco “radical”. É, de minha posição, transfeminista.

kimberly

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