Solidão

Texto de Helena Agalenéa

Solidão.

Pra um trabalho fico caçando vídeos de agressões a travestis. É sempre doloroso. Yasmin morreu e os apresentadores do jornal só conseguem rir porque acharam ela gata e foram “enganados porque ela é homem”. Existe um programa que mostra que travestis não são confiáveis, são violentas, agridem, roubam e às vezes até matam. Em todas, todas essas matérias televisivas, as travestis estão no masculino (algumas exceções) e sempre falam seu “nome de registro”, como se essa informação fosse importante.

Eu não tenho medo de morrer. Eu tenho medo da ridicularização feita após a morte. Com gente rindo porque eu tenho um pênis em vez de ter empatia e se sensibilizar porque alguém, de 23 anos, morreu vítima de ódio. Eu tenho medo de a parte mais importante da minha morte ser revelar o nome que está no meu documento. Eu tenho medo de justificarem a minha morte.

Eu não sei como as pessoas têm coragem de dizer que sou radical demais ou brava demais com o que eu acredito. Viver dói. Ser quem sou é errado e às vezes parecem que todos os caminhos vão levar pro mesmo lugar.

Esses dias eu precisava ir muito no banheiro da estação. Tive que esperar encontrar o meu amigo, para então ter a segurança de que alguém estava comigo e eu não sofreria nenhum tipo de humilhação.

Às vezes eu me sinto muito sozinha. Porque sinto que ninguém vai poder me amparar sempre que eu precisar. Porque quase todo dia dói um pouco. E eu tenho tanta gente incrível a minha volta, disposta a me amar e me dar carinho e cuidado, mas às vezes, eu ainda me sinto sozinha. Como se meu corpo não pertencesse a esse mundo e tudo o que eu sou, é errado.

Às vezes eu acho que não vou ser amada até o fim. Que vão me abandonar, eu tenho a sensação de que tudo que eu crio morre. Porque estar perto de mim é fazer parte desse mundo nojento. é estar sujeito a agressões apenas por estar perto de mim.

E mesmo quando estou com alguém, sei que essa pessoa vai acabar me trocando por uma mulher cisgênera. Sinto que estou fadada a sempre ser aquela mulher que só é passagem, uma aventura, um deleite, mas eu jamais serei a mulher da vida de ninguém. Ninguém vai me escrever um poema, se declarar pra mim, estar orgulhoso ao meu lado ou querer uma vida comigo. Eu sou aquela que transa bem, vale a pena um flerte, um beijo, uma trepada. Mas de repente me transformam noutra coisa, como se eu tivesse confundindo as cosas esse tempo todo.

Eu sou a amiga. E caberá a mim ver a minha volta todos os homens com quem me relacionei se unirem a mulheres, e construírem suas famílias cis e feliz. E eu me sinto sozinha, por que quem vai amar meu corpo e a minha alma até o fim? Tem tanta mulher mais interessante por aí…

E por mais que eu não esteja sozinha agora, eu sinto que de novo, esse dia vai chegar. Porque todos vão se esquecer de mim e eu vou sempre, sempre me lembrar.

E quando estou sozinha, me resta ver como meu corpo e minha identidade são diariamente assassinados e ridicularizados. Nossa morte é motivo de piada.

Eu tento ser auto-suficiente e ser feliz sozinha. Mas esse mundo às vezes é tão cruel que eu não sinto que tenho forças. Desde pequena eu sempre quis encontrar alguém que aliviasse a minha dor quando eu não fosse capaz sozinha. Mas todos os meus alguéns um dia me deixam sozinha, de novo.

Eu não queria alguém só para mim. Não quero me aprisionar a ninguém. Mas queria sentir que tem alguém junto de mim, mesmo longe, e que me deseja, e que me quer, e que me ama de todos os jeitos possíveis. E eu me sinto patética por ter os mesmos desejos da garota de treze anos que um dia eu fui. Mas não me culpo, porque é muito difícil se sentir sozinha. Ainda mais quando tanta gente te machucou, deliberadamente, na sua vida.

Eu tenho muita gente querida. E gente que eu penso quando eu me sinto sozinha, e que mesmo de longe, tá perto. E eu não consigo entender porque essa eterna sensação de abandono me assola. Não sei se é porque todos os caras que eu fiquei simplesmente foram embora quando cansaram. Ou se foi porque 90% de amigas e amigos importantíssimos que fiz na vida me abandonaram quando começaram a namorar. Não sei se é por conta de todos os homens que se relacionaram comigo as escondidas e me pediram segredo. Não sei se é por conta de todas as pessoas que desejei e não me desejaram de volta. Não sei se é porque todos os dias sofro alguma transfobia, às vezes até mais fáceis de ignorar.

Só sei que tenho essa eterna sensação de abandono, e de solidão. Que às vezes é curada com o amor de pessoas muito queridas e próximas, mas que nunca vai embora. É como se fosse crônica, assim. Mas olhando o mundo que me cerca, eu acho completamente justificável eu me sentir assim. Até hoje sinto que só teve um alguém que eu criei algo e que não me abandonou, nunca, nunca me deixou sozinha, e se esforça sempre pra estar comigo. Perto ou longe. Me escreve cartas amorosas, me diz palavras bonitas, me dá carinho e entra em brigas e discussões por minha causa, me faz me sentir linda e sensual. Corre até mim se eu estou triste. E, mesmo assim, eu fico só esperando o dia dessa pessoa também me abandonar. É engraçado, alguém que consegue me fazer me sentir não sozinha, que me faz muito feliz, e nem assim eu consigo só aproveitar da amizade. Eu fico esperando o dia dele ir embora também. Por mais que pensar nele às vezes me faça sentir que tenho alguém que vai lutar e resistir comigo (e já me fez chorar tanto de felicidade), mesmo tendo criado uma relação tão bonita, eu ainda acabo pensando que isso também vai acabar, morrer.

E não acho que eu seja uma pessoa triste. Não mesmo! E eu amo muitas pessoas, e queria namorar com todas elas, se fosse possível. Todos amigos e amigas por quem sinto tantas coisas boas no peito. Eu consigo aproveitar cada segundinho com essas pessoas, choro de saudade, choro de alegria, aproveito a companhia, mas… Existe essa voz na minha cabeça me lembrando de que o mundo é uma bosta.

Eu entendi que nunca vai existir ninguém que vai fazer essa sensação de abandono sumir. É algo que eu devo resolver sozinha! Mas eu fico me perguntando: será que eu consigo?

Será que num mundo tão cruel para pessoas como eu, eu vou conseguir não me sentir mais sozinha? Será que eu vivo pra ver isso tudo mudar nem que um pouquinho?

Até lá, espero ir sobrevivendo.

Imagem: Blogueiras Negras – clique para ler o texto de Maria Clara Araújo “Solidão da mulher trans negra”.


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