Desde o início deste blogue, eu, Hailey, e posteriormente a equipe de pessoas que coordenam o Transfeminismo comigo, tínhamos a ideia de propor uma forma de feminismo que fosse inclusiva às mulheres trans* e às pessoas cujas expressões de gênero não se encaixam no binário cisgênero. Nosso projeto foi – e continua sendo – ambicioso, do ponto de vista do grau de dificuldade que é falar para e sobre pessoas que são/estão sumariamente excluídas socialmente, excluídas dos espaços de sociabilidade, seja educação, emprego ou, inclusive, lazer. Ainda hoje, pessoas trans* – transexuais, travestis, transgêneros e/ou outras – têm seu acesso à educação, emprego e lazer limitado por questões socioeconômicas, burocráticas e principalmente pelo amplo preconceito e discriminação que sofremos por ousarmos (con)viver com o(s) gênero(s) pelo(s) qual(is) nos identificamos. Somos agredidxs verbal e fisicamente, em todos os espaços sociais – incluindo a(s) militância(s) – expulsas, patologizadas e desumanizadas, relegadas ao domínio dos saberes médicos cuja função é “explicar” por que existimos (e, muitas vezes, por que não deveríamos existir).
Não obstante, sobrevivemos. Não graças ao Estado que nada faz para nos proteger, e sim graças a nossa própria organização e solidariedade que felizmente ganha força e trabalha para sair da tutela das ONGs “GGGGs” que pouco ou nada fizeram para garantir nossa sobrevivência. No Brasil, a maioria dos assassinatos classificados como homofobia é de travestis. Os crimes, no geral, são cometidos com requintes de crueldade expressados por fuzilamentos, mutilações, esquartejamentos e afins. O Brasil é campeão em assassinatos de pessoas trans* no mundo. A maioria das travestis assassinadas também são trabalhadoras sexuais. A transfobia profundamente enraizada na sociedade nos expulsa simbolicamente do espaço escolar. A escola funciona, então, como uma instituição reguladora e fiscalizadora da normatividade cisgênera. O bullying transfóbico, o assédio e violência verbal e física, são ferramentas que atuam para tentar “endireitar” os sujeitos trans* que, quase sempre vencidos, abandonam a escola – o que resulta na baixa taxa de alfabetização das pessoas trans*. Poucas terminam o 2º grau e ainda menos acessam a universidade. Expulsas das escolas, também são quase sempre expulsas de casa. Se veem então sem o apoio financeiro (sem falar afetivo) da família, restando-lhes a única opção que a sociedade fornece, a única utilidade dos nossos corpos: o trabalho sexual. Esta é a realidade do Brasil atualmente.
Dito isso, ao longo de nosso percurso e construção, decidimos que não bastava somente sermos (trans)feministas, pois esbarrávamos sempre na questão de classe e de raça: Quem são as travestis no Brasil? Em sua maioria pobre e negra. Não poderíamos, por isso, deixar de lado questões cruciais que atravessam a questão trans*. Além disso, durante nosso fortalecimento com outros grupos feministas, percebemos que a solidariedade em relação ao gênero não era suficiente. Fazer um feminismo com foco apenas no gênero não era suficiente. Não basta ser mulher, porque “mulher” é uma categoria ampla e diversa, que abarca múltiplas vivências atravessadas por diferentes opressões. Não basta lutarmos pela liberação feminina, porque esta está atravessada por outras lutas como raça, classe, orientação sexual, e outras que não podem ser isoladas de nossa causa. Por isso, não poderíamos, em sã consciência e eticamente, promover um transfeminismo que deixasse de lado essas questões.
Dessa forma, gostaríamos de assumir publicamente a linha política de nosso coletivo. Somos um coletivo transfeminista socialista. Não só transfeminista e socialista, mas também negro, uma vez que acreditamos que a luta socialista não pode ser dissociada da luta antirracismo. A luta de classes é algo que atravessa diretamente nossas vivências e, não somente, também temos solidariedade como classe marginalizada com nossas companheiras trabalhadoras negras, pobres, com deficiência, lésbicas e bissexuais, no Brasil e no mundo, pois nosso socialismo se quer internacionalista. A luta pela libertação econômica e social trans* é indissociável da luta contra o capitalismo, pois é o capitalismo que se aproveita e promove a transfobia e a miséria. Não existirá, enquanto houver capitalismo, igualdade e justiça para todas as pessoas trans*, pois o capitalismo é por si mesmo um sistema de exploração. O socialismo representa uma forma de justiça social e econômica necessária para acabarmos efetivamente não só com a transfobia, mas com todas as outras opressões.
Companheirxs trans* de todo mundo, uni-vos!
Coletivo Transfeminismo