Surgimento “rápido” e “tardio” da disforia de gênero é a nova “pseudo-homossexualidade”

Texto de Jéssica Inanna e comentário de Beatriz Pagliarini Bagagli.

“Homosexual constitucional”.

Esse termo foi bastante usado no período pós-Primeira Guerra e a ideologia subjacente é a distinção entre “homossexuais constitucionais” (ou reais, neurológicos, nascidos) e “pseudo-homossexuais” (ou aprendidos, “sodomitas”).

Na época, homossexualidade ainda era crime e surgiram estudos conectando fatores biológicos (genéticos, congênitos, hormonais) com sexualidade. Daí isso virou um recurso de defesa no julgamento de pessoas acusadas do “crime” de homossexualidade.

Por exemplo, quando um homem era acusado de “sodomia”, ele passaria por um exame médico para verificar se ele tinha comportamento “afeminado”, se raspava os pelos pubianos, se tinha tendência à “histeria”, etc. Se fosse o caso, ele seria inocentado.

Mas se o cara tinha sido “hétero” a vida toda e, “do nada”, saiu com um cara e gostou da coisa – condenado.

(Aliás, isso dá uma pista de onde surgiu a bifobia).

Por que após a guerra? Bem, vocês sabem como é: um monte de homens juntos, nenhuma mulher por perto…

O que aconteceu é que cresceu muito a quantidade de pessoas que passaram a assumir publicamente que eram homossexuais (na época, não existia o conceito de bissexualidade), o que impulsionou o movimento homosexual. Muita gente se “assustou” e pensou que a quantidade de homossexuais estava crescendo. Como se a guerra tivesse causado isso – e não apenas trazendo à tona algo que já existia.

(Dica: busque “constitutional homosexual” no Google, entre aspas: vários sites religiosos defendendo a mesma ideologia).

Recentemente, essa ideia bizarra está ressuscitando – J.K. Rowling, Richard Dawkins, entre outros. A distinção é essencialmente a mesma, só muda a nomenclatura: entre “transgeneridade nascida” (ou biológica) e “transgeneridade tardia” (ou “late/rapid onset gender dysphoria”).

E o que defendem com isso?

Que nós, pessoas trans, temos que ser obrigadas a passar por um JULGAMENTO para determinar se somos trans “de verdade” ou “de mentira” – e daí deliberar se nós temos direito à nossa identidade de gênero ou não.

“Toda grande canalhice da história acontece duas vezes: primeiro como tragédia, depois como farsa”. Karl Marx

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Beatriz: Engraçado como isso mostra os mil paralelos com as identidades trans, a questão do laudo gatekeeper pra “provar” a transexualidade “verdadeira”, etc. Hoje em dia temos o diagnóstico fake do momento sobre disforia de gênero de “surgimento rápido”, a ideia de que existiria uma nova forma de disforia que apareceria “subitamente” porque teria decorrido de “contágio social” (argumentam ainda apelando para o aumento das identidades transmasculinas, dizendo que “meninas são mais propensas a se identificarem com a dor das colegas, por isso imitam os seus pares”).

Zinnia Jones fez um monte de artigo mostrando todas essas falácias, os últimos que ela fez analisando como os estudos e repercussões da “disforia de surgimento rápido” revelam que foi na verdade a percepção dos pais transfóbicos de que a disforia de gênero de seus filhos surgiu repentinamente, ao invés do real surgimento da identificação trans (porque, vejam só, o estudo que deu origem à noção de “surgimento rápido” nem ao menos se deu o trabalho de entrevistar e avaliar os filhos trans, baseando-se unicamente nos relatos de pais reprovadores das identidades de gênero de seus filhos!). Vários estudos mostram também, como ela menciona, que existe um lapso temporal considerável entre um jovem ou criança trans ter consciência de que é trans e externalizar (assumir) que é trans para seus pais, e isso explica perfeitamente a percepção equivocada ou enviesada dos pais de que a disforia de gênero teria surgido “rapidamente”.

Jéssica: tem os dois tipos. O texto Transgender Wars, por exemplo, usa o conceito “late onset gender dysphoria”, e tem vários usando o mesmo conceito para diferenciar pessoas trans “verdadeiras” e “falsas”.

Beatriz: sim. O “late onset” (surgimento tardio) é usado também para estigmatizar as mulheres trans, porque eles associam com a noção de “autoginefilia”, condição parafílica que estaria presente em todas as mulheres trans lésbicas.


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