Terapias de conversão não são apenas sobre a “cura gay”

Diálogo entre Beatriz Pagliarini Bagagli e Laura Venancio de Souza.

Terapias de conversão não são apenas sobre “cura gay”. Tratam-se de práticas também destinadas a regularem a cisnormatividade. Percebam a mesma retórica operando na ideia de que a “reparação” normativa se dá em nome do alívio do sofrimento do indivíduo “tratado” e até mesmo da atenuação dos efeitos do “ostracismo social” – expressão bonita para designar discriminações e violências heterocissexistas.

Nos anos 1970, quando médicos e “especialistas” constataram que práticas psicológicas não seriam capazes de “transformar” adolescentes e mulheres trans adultas em homens masculinos, a “preocupação terapêutica” voltou-se para crianças, pois imaginava-se que a intervenção precoce nestas crianças poderia preveni-las de se tornarem transexuais e/ou homossexuais. Tais práticas resultaram no suicídio de pessoas “tratadas”, como o caso de Kirk Andrew Murphy.

Aqui vai um trecho traduzido do texto “DiscoSexology Part II: The Timeline“, da Cristan Williams. Leiam no transadvocate:

Zucker e Bradley (1995) acreditam que tratamentos reparativos (encorajando a criança a aceitar o seu sexo natal e gênero associado) podem ser terapêuticos por várias razões. Eles acreditam que o tratamento pode ajudar a reduzir o ostracismo social, ajudando as crianças não-conformes a se misturarem mais prontamente com colegas do mesmo sexo e impedir o desenvolvimento psicopatológico a longo prazo (ou seja, é mais fácil mudar uma criança do que uma sociedade intolerante à diversidade de gênero). Acredita-se que a terapia reparativa reduza as chances de transtorno de identidade de gênero no adulto (isto é, transexualismo), o qual Zucker e Bradley caracterizam como indesejável. Assim, “cortar pela raiz” o transtorno de gênero mantém a promessa de uma vida mais fácil para a criança na idade adulta, algo que ressoa entre alguns pais (Bauer, 2002). Zucker e Bradley (1995) acreditam que esses objetivos são clinicamente válidos e fornecem justificativa suficiente para a terapia que “ajudará as crianças a se sentirem mais seguras sobre sua identidade de gênero como meninos ou meninas” (p. 270). De fato, Zucker (1990b) aponta que reduzir o ostracismo de pares e a prevenção do transexualismo por si só é motivo suficiente para o tratamento, dada a angústia que os transexuais adultos experimentam.

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Em menos de uma hora de acordada acessando essa rede social, aprendi que pessoas tentando invalidar a transgeneridade infantil gostam dizer que isso é só invenção de criança da mesma forma que “se achar um dinossauro” e, assim, fazem vista grossa ao fato de que imaginação infantil é uma coisa e saúde é outra, já que você não teria essa reação diante de uma queixa de dor ou de “escutar vozes”, por exemplo. Também aprendi que alguns especialistas defendem a “cura gay/trans” como uma forma de evitar o que chamam de “ostracismo social” (e nós chamamos de ‘violência cis-heterossexista’ mesmo) e “cortar o mal pela raiz”, produzindo indivíduos mais “bem encaixados” socialmente. É o cis fazendo cis-bullying quando você é criança e dizendo que é pra te proteger de sofrer cis-bullying quando adulto. Soa burro porque não pretende ser lógico, mas apenas fazer sentido circular dentro de uma lógica que tem a cisgenereidade como régua.

A transfobia se disfarça nos mais variados argumentos e formas. Às vezes, a gente fica discutindo de boa fé com um argumento ou gesto enquanto aquilo não é mais que uma estratégia, consciente ou não, de reclamar para si o “direito” de repudiar pessoas trans porque são trans. Pessoas cis se reservam o direito de ter uma mentalidade século XIX sobre gênero enquanto não o fazem com tanta facilidade com outras questões do século XXI. Não é racional, é só desleixo em lidar a sério com uma questão.

Ontem, vi uma live super empoderadora da Alok @alokvmenon em que ela, comentando sobre o costume das pessoas cis de tirar fotos não autorizadas de pessoas trans em público pra fazer piada, disse que nós não somos o bode expiatório para os cis descontarem as inseguranças e conflitos sobre a SUA própria cisgenereidade e a forma com que ELES tiveram que lidar com a coação cisnormativa à qual todos fomos sujeitos. Que vão procurar terapia, não encher nosso saco.

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B. P. B: Dizem que uma criança reivindicar uma identidade de gênero não cisgênera é uma fantasia, e fantasias de crianças não devem necessariamente serem incentivadas. Acontece que a fantasia de uma menina trans em ser/se sentir uma menina ou de um menino trans em ser/se sentir menino não difere da fantasia de meninas e meninos cis em serem/se sentirem, respectivamente, meninos e meninas. E ninguém acha necessário questionar essa fantasia, e aliás, questioná-la, a partir da posição cis, seria vista como uma violência contra a identidade da criança. Por que apenas as identificações trans são questionáveis?

L. V. S.: Porque é um jeito cis de pensar a infância. A cisnormatividade interpenetra a mente como um paradigma.
Acho que uma questão como essa que você colocou sequer passa na mente deles. A gente só ressalta a verdade da recíproca da lógica deles e soa genial, porque a cisgeneridade é burra.

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Anathema Jane McKenna

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