Tiffany e o Voleibol

Entrevista originalmente publicada na página Lince Esportes.

Olá amantes do Voleibol! Vamos ver as duas partes sobre o caso Tiffany, fizemos 5 perguntas ao estudioso do caso Regis Rezende, Professor de Educação Física e Fisiologista formado pela PUC-GO, Pós-Graduado e Especialista em Voleibol pela Universidade Gama Filho-RJ, CREF: 004202-G/GO.

LINCE ESPORTES – Você como um estudioso no caso da Tiffany, fale resumidamente para nós sobre o caso dela e como foram os estudos para chegar a liberação

REGIS – A presença de atletas transexuais no meio esportivo, não é algo novo bem como os estudos que veem sendo conduzidos nesse grupo de atletas. Mesmo apesar do grande número de pesquisas, por não haver um parecer final sobre as inúmeras variáveis que envolvem o esporte de rendimento, as manifestações midiáticas acabam ganhando força mesmo que não possuam embasamento cientifico e com isso conseguem distorcer os estudos, não aceitam os resultados e esperam para que surjam pesquisas discordantes e assim poder sustentar essa narrativa.
O COI ao fim de cada ciclo olímpico, avalia os resultados obtidos durante as competições e revisam e aprimoram suas diretrizes e quando incluiu transexuais no esporte, passaram a seguir o estatuto da IAAF – International Association of Athletics Federations. O caso Tiffany não é um fator isolado, ela não foi a primeira atleta a receber liberação para atuar, quando se coloca “caso Tiffany”, estamos criando um padrão de que a liberação foi feita por conta dela, quando a liberação foi feita com base em estudos científicos em grupos de atletas transexuais.

LINCE ESPORTES – Existe uma preocupação em relação a perda de espaço das atletas mulheres cisgénero no esporte feminino, em um futuro próximo isso poderia acontecer?

REGIS – É uma preocupação totalmente infundada. Não existe no atual cenário ou em um cenário hipotético onde mulheres cisgenero serão substituídas por atletas transexuais. Um artigo excelente que combate esse “temor” foi publicado em 2017, intitulado” . Sport and Transgender People: A Systematic Review of the Literature Relating to Sport Participation and Competitive Sport Policies” em português seria “Esporte e Pessoas Transexuais: Uma leitura sistemática da literatura relacionada a participação e as competitivas politicas esportivas. Esse artigo nos mostra que apenas 1,1% de toda a população MUNDIAL é composta por MULHERES TRANSEXUAIS e 0.8% composta por HOMENS TRANSEXUAIS. O que isso nos traduz para a sua pergunta? Precisamos considerar dentro desse 1,1% da população mundial, a idade, classe social e também quantas dessas pessoas estão inseridas no ambiente esportivo. Quantas dessas pessoas podem se tornar atletas competitivas? Essa pergunta já derruba totalmente a tese de que o mercado feminino corre risco de ser inundado por atletas transexuais. Esporte de rendimento envolve dinheiro e patrocínio. Equipes não irão contratar atletas apenas por serem transexuais, se a jogadora não corresponder, se não tiver nível, não irá jogar. O técnico do Brasília Vôlei disse que irá sugerir a criação de uma liga transexual. Essa fala é tão perigosa e tão carregada de segregação, que não existe mesmo hipoteticamente a possibilidade de que isso aconteça. Não há registro de atletas transexuais atuando em TODO O MUNDO que possam formar um time de elite com 12 atletas. Em ligas profissionais nós temos conhecimento de apenas 4 atletas, incluindo a Tiffany. E mesmo as que atuam, estão em ligas secundárias, como o campeonato espanhol, campeonato na Indonésia e a série A2 da Itália e as mesmas já estavam no mercado antes da Tiffany. Não se pode comparar homossexualidade com transexualidade. Não se pode achar que todo homossexual irá querer jogar no feminino. Quando usam comparações do tipo: “Se o Wallace virasse transexual”, se o “Usain Bolt virasse transexual”, se o “Shaquile O’Neal virasse transexual”, ninguém vira transexual, as pessoas transexuais passam por um processo de transição. Não há riscos de perda de espaço de mulheres cisgenero no mercado, porque não existe ESTATISTICAMENTE possibilidade de que 1,1% da população mundial transexual seja constituída por atletas, atletas de voleibol e atletas de alto nível no voleibol ou em qualquer outro esporte. Insistir nesse argumento é irresponsável e ignorante.

LINCE ESPORTES – Em alguma mudança de parâmetro por parte do COI, você acredita que possa chegar ao ponto da não inclusão de novas transexuais no Voleibol?

REGIS – Eu tenho estado em contato com uma das conselheiras do COI e inclusive o meu artigo e estudo têm grande possiblidade de serem publicados no site oficial da entidade. O COI após anos de segregação passou a incluir pessoas transexuais nos esportes, seguindo como eu mencionei, as orientações da IAAF. Essa mesma IAFF, foi a entidade responsável por banir do esporte a atleta polonesa Ewa Klobukowska, a atleta foi banida do esporte e teve todos seus recordes excluídos por apresentar na sua constituição genética o mosaico de XXY e ter sido considerada homem. Depois de tal humilhação a atleta, já afastada do esporte engravidou e declarou que sua maior conquista era ter sido considerada homem e ainda assim ter dado à luz. Após esse precedente a IAFF e o COI deixaram de utilizar os testes de constituição genotípica, até mesmo como reparação ao erro cometido com a Ewa e outras atletas, mas continuou a fazer testes de níveis de testosterona. No voleibol a jogadora brasileira Érika foi o ultimo caso de atletas a falharem no exame de feminilidade e como consequência teve que ser submetida a uma terapia de correção hormonal, após o caso da Erika a FIVB deixou de realizar testes de feminilidade nas atletas de voleibol. A transição da Érika pôde ser sentida no jogo dela, já não tinha mais a mesma impulsão de 90cm e nem a mesma explosão, semelhante ao que aconteceu no caso da Tiffany. Eu não acredito que o COI irá recuar na decisão, o que pode acontecer é que possam surgir novas diretrizes, limitações ou novas permissões e com novos estudos poder formular outros pareceres no futuro.

LINCE ESPORTES- Como analisar a performance da Tiffany em números? Como os recordes dela em pontuação podem trazer análise para o futuro da Superliga?

REGIS – O que muito tem se questionado e eu volto a insistir nesse tópico é que quando falam da performance da Tiffany, só levam em consideração os números absolutos. Quando se fala de performance não se pode deixar de fora eficiência e eficácia. Tiffany atacou no campeonato até agora 315 bolas em 7 jogos, uma média de 45 bolas atacadas por jogo. É obvio que a jogadora/jogador que mais recebe bolas, irá pontuar mais. Tiffany atacou 75 bolas no jogo contra o Praia (jogo onde bateu recorde de pontos em uma partida da Superliga), marcou 33 pontos em ataque, 6 em bloqueios. A segunda jogadora que mais recebeu bolas em seu time, foi a Cubana Palácio que atacou 23 bolas e converteu 10 pontos. Para se ter uma ideia, Tiffany sofreu 7 pontos de bloqueio, isso mostra que o número de bloqueios que ela sofreu, foi quase o mesmo número de pontos que sua companheira de equipe converteu em ataques. Tiffany possui hoje 45% de eficiência no ataque e esse número tende a diminuir com mais ações e mais jogos, principalmente se continuar no mesmo ritmo de receber essa quantidade absurda de bolas por partida, essa porcentagem não é um número emblemático em performance, pelo contrário é um número bem “mediano”. Até nos termos que usamos as pessoas fazem interpretação equivocada. Mediano ou Medíocre, são termos usados para descrever o que está dentro da média e não abaixo dela como o senso comum nos faz acreditar. Então sim, partindo desse parâmetro, a Tiffany é uma jogadora que está dentro da média ou mediana.
Grande parte da imprensa começou a postar sobre o recorde de pontos obtido por ela na partida contra o Praia Clube. Recordes foram feitos pra serem quebrados. O recorde anterior de uma partida da Superliga era da Tandara que marcou 37 pontos contra o próprio Praia Clube, quando atuava pela equipe Campinas/AMIL na temporada 2013/2014 e a própria jogadora já esteve perto de quebrar esse recorde em várias oportunidades. No jogo em questão Tandara atacou 68 bolas e converteu 36 em pontos em ataque e 1 em saque. O percentual de Tandara nessa partida foi de 53%, em se tratando de performance, o recorde da Tandara ainda é superior aos 33 pontos de ataque que a Tiffany conseguiu na partida de terça-feira, Tandara mantem o maior número de pontos em ataques 36(contra 33 da Tiffany) e melhor porcentagem 53%(contra 44% da Tiffany). A jogadora Bruna do Esporte Clube Pinheiros também vem chamando a atenção pela quantidade de pontos marcados na competição. Em jogo realizado também na terça-feira dia 30 de janeiro, a oposta de 1.78m marcou 33 pontos (31 em ataques), aproveitamento de 46% em 68 bolas atacadas, contra o Barueri de Zé Roberto Guimarães. Se cada vez que uma jogadora ultrapassar a marca de 20 pontos por jogo, questionarmos se ela possui vantagens sobre as outras, passaremos o campeonato inteiro nesse questionamento.
O problema não são os números da Tiffany, é como usam esses números contra ela.
Bruna, Tandara, Thaisinha do Fluminense, Renatinha também do Fluminense, centrais como Mayhara do RIO têm superado a marca de 20 pontos com frequência e com porcentagens superiores. Então não entendo ao dizer que a Tiffany está levando vantagem quando ela tem aproveitamento inferior ao dessas outras atacantes.

LINCE ESPORTES – Finalizando nossa entrevista gostaria que você comentasse sobre a questão biológica. A Tiffany completou o processo de transição aos 31 anos e usufruiu de genética masculina para o desenvolvimento de seu corpo. Como o tamanho dos órgãos internos, a questão do Vo2 máximo, a densidade óssea podem ser usados como vantagem ou você acredita que não há ou não vantagens em relação as atletas cisgénero?

REGIS – A questão biológica tem sido o maior fator de discordância da participação de atletas transexuais em competições femininas. Mas o que essas pessoas não conseguem separar cientificamente é que a Tiffany não é um homem operado, ela é uma mulher transexual que precisa manter um nível de hormônio que possibilite sua participação. Dito isso, precisamos avaliar diversos pontos da performance esportiva e ser bem cuidadosos com isso na relação aplicada ao voleibol. Primeiro que não se pode usar bibliografia ou artigos científicos de pessoas cisgenero para avaliar pessoas transexuais. A ausência de homeostase no corpo de uma mulher transexual já derruba várias teses de favorecimento biológico. O médico do Esporte Clube Pinheiros que concedeu entrevista a VEJA, disse que a Tiffany leva vantagem por ter um Vo2 máximo superior e possuir pulmões maiores que as mulheres cisgenero. Me causou espanto um médico esportivo afirmar que o Vo2 máximo pode ser uma vantagem da Tiffany perante as outras atletas. É bem sabido que o voleibol por ser esporte aeróbico no que tange a duração das partidas, mas é essencialmente anaeróbico no que tange os rallys do jogo. No voleibol, sempre treinaremos todas as valências inclusive o Vo2 máximo, entretanto ele não é e jamais será indicativo de performance. No voleibol o Vo2 máximo atua como agente regenerativo. Atletas melhores condicionados terão recuperação mais rápida. Mas não implica dizer que um atleta que possui Vo2 máximo inferior irá ter performance inferior. Se fosse assim, montaríamos equipes com todos os atletas condicionados em seus 30% de Vo2 máximo e teríamos uma equipe imbatível. Outro ponto é a questão óssea, ter uma densidade óssea maior que o de mulheres cisgenero, no voleibol, também não é indicativo de vantagem. Nenhum estudo provou até o momento que essa característica possa influenciar na performance no voleibol, na verdade em alguns esportes, que se beneficiam pelo menor centro de gravidade, pode ser uma desvantagem para atletas transexuais terem peso e densidade óssea superior a de outras atletas cisgenero.
Quando se faz terapia de correção hormonal, além de todo o desequilíbrio causado no corpo e suas funções, existe também a significativa perda de massa muscular. Entre as funções do Sistema muscular destaca-se ser responsável pela manutenção do sistema esquelético e produção de movimentos. Com menos massa muscular e tendo que suportar ossos mais pesados, como o corpo de uma mulher transexual poderá manter a mesma performance? O desgaste será maior, a queima de energia será maior, o tempo de recuperação será maior. Pode-se perceber as deficiências no jogo da Tiffany como a velocidade o tempo de reação.
É necessário cautela não só daqueles que possuem acesso e alcance midiático, mas também dos profissionais da área que consigam ver com olhos questionadores e com vontade de somar à pesquisa ao invés de formularem decisões baseadas no que é sabido pelo senso comum. Estudos existem muitos, disponibilidade e interesse nem tanto.


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