Por Caia Coelho.
Não por acaso, o país que mais mata mulheres cisgênero é também aquele que mais mata mulheres transexuais e travestis. No entanto, o desafio de articular a noção de feminicídio, criada por Jill Radford e Diana Russel nos anos 90, às singularidades transfóbicas dos nossos assassinatos ainda é um desafio. A crítica à hipótese de descontrole e passionalidade do feminicida foi incorporada ao pensamento feminista há quase 30 anos. Entende-se que a motivação do assassino não é o descontrole, trata-se – ao contrário – de controle excessivo sobre o corpo feminino.
No entanto, frequentemente, a interpretação do assassinato de travestis e mulheres transexuais ainda se baseia na hipótese de vergonha, de proteção da honra. O Brasil é o país que mais procura por nós no XVIDEOS e também o campeão em nos matar. Tal ambivalência, somada a quantidade de casos de mortes horríveis após a realização de programas, leva à apressada interpretação da aniquilação como forma de negação dos vestígios de certo “desejo sexual abjeto”.
A vergonha, evidentemente, é um elemento a ser levado em consideração para se entender o fenômeno do assassinato de travestis no Brasil, já que ocorre a ridicularização (inclusive midiática*) de quem se relaciona conosco ou assume seu desejo publicamente. Porém, para refletirmos mais complexamente sobre isso, é imprescindível lançar uma questão: se a maioria dos homens tem vergonha de sair com travestis, por que somente alguns matam? A resposta à questão é encontrar a causa do transfeminicídio.
Se feminicídio é um termo que tem a intenção política de permitir a análise da morte de mulheres com implicação misógina, transfeminicídio nos possibilitará o mesmo, mas com a influência da transfobia no processo. Não há pudor, nem culpa em nos matar. Isto é, nossas vidas não são consideradas valiosas o suficiente para sequer mobilizarem piedade, dó, culpa, qualquer sentimento por nós capaz de operar como um contrapeso que os impeça de enxergar o aniquilamento, o assassínio, como a melhor solução de um problema criado por eles próprios: a vergonha de nos desejar. Sim, eles sentem vergonha porque aprenderam nos odiar.
A coexistência do ódio e do desejo por nós oportuniza de objetificação sexual à morte. Homens não matam travestis porque tem vergonha do próprio desejo. Eles tem vergonha do próprio desejo porque odeiam travestis, e também porque odeiam travestis, são capazes de matar. Porém o ódio não é um sentimento da relação dos dois, é uma lente a partir da qual se vê o mundo e a partir da qual não somos entendidas como humanas.
**FEMIGÊNOCÍDIO/TRANSFEMIGÊNOCÍDIO OU TRANSFEMINICÍDIO DE ESTADO**
Tanto a misoginia quanto a transfobia operam nos mais diversos espaços, sejam eles institucionais ou não, e são capazes de matar em todos eles. Quando uma mulher morre em decorrência de um aborto feito em clínica clandestina, isso é femigênocídio, termo proposto pela Rita Laura Segato. Quando uma mulher morre em decorrência de silicone industrial inflamado, sem ter onde tirar, porque só 1 hospital público realiza o procedimento no Brasil, isso é transfemigenocídio. Quando falamos de morte em adolescente causada por trombose em decorrência do sus não atender pessoas menores de 18 anos em processo de hormonização e de transição, o nome disso é transfemigenocídio. E, da mesma forma, seria lamentavelmente eufemístico a gente chamasse uma morte meramente de suicídio, não também de transfemigênocídio, quando se torna insuportável ou inviável continuar vivendo num mundo cheio de transfobia.
Proponho também chamar este processo de Transfeminicídio de Estado. Quando Dilma, em 2015, sancionou a Lei do Feminicídio, retirou qualquer menção à palavra “gênero” ou ao termo “identidade de gênero”, e frisou que o que aquela lei torna hediondo é o assassinato cometido contra pessoas do “sexo feminino”.
O transfeminicídio, o transfemigênocídio, ou o transfeminicídio de Estado, partem de uma ordem misógina, transmisógina, machista, que passa pelo trabalho sexual exercido em condições precárias, pela expulsão de casa, pelo isolamento social. Tudo isso resulta em mortes extremamente violentas, sangrentas, mortes ritualizadas. O empenho de deixar o nosso corpo desfigurado é uma forma de torná-lo irreconhecível na “forma de gente”.
* Lembremos do caso do Ronaldinho, que ao sair com travestis, foi ridicularizado midiaticamente. Na época, o Fantástico fez uma matéria de 15 minutos para ele “se explicar” [SIC] ao povo brasileiro. Não é necessário muito esforço para lembrar de outros casos, que foram transmitidos originalmente em programas policiais e humorísticos e viralizaram na internet.