Transfeminismo e abolicionismo de gênero: imperativo de luta

Por Inaê Diana Ashokasundari Shravya.

Ser abolicionista de gênero e ser uma pessoa trans não são coisas inerentemente excludentes e tampouco opostas.

Abolir o gênero não é afirmar o sexo (genital sexuado), pois o sexo é efeito do gênero, e não sua causação, sua precedência. É o gênero instituído sobre o corpo que vai fazer com que surja o sexo, e consequentemente, a sexualidade. As categorias “macho” e “fêmea” também comportam esse processo de sexualização do mundo, neste caso podendo ser designado eco-heteronormatividade, onde supostamente haveria uma complementaridade de um com o outro.

Sobre isso Foucault fala o seguinte:

“Se é verdade que a ´sexualidade é o conjunto de efeitos produzidos nos corpos, os comportamentos, as relações sociais por um certo dispositivo oriundo de uma tecnologia política complexa, é preciso reconhecer que este dispositivo não atua de maneira simétrica aqui e ali, que não produz, portanto, os mesmos efeitos.”

“O movimento mais sofisticado da tecnologia consiste em se apresentar exatamente como ‘natural’” (Preciado)

“Homens” e “mulheres” não seriam os mesmos em contextos sociais diferentes, ainda que possuam algum tipo de conectividade por conta do capitalismo global – gênero e classe estão interconectados -. Logo, não há uma única teoria que dê conta de abolir o gênero da face da terra, além de que não haveria nada de materialista nisso. Para que a abolição fosse possível, seria mais do que urgente análises particulares e que não se encerrem em si mesmas, que consigam articular suas particularidades com uma perspectiva planetária.

Tânia Swain, antes de seu surto patriarco-colonial, antes de sucumbir à narrativa do determinismo biológico, disse algo um tanto pertinente:

“Desta forma, o sexo social , ao criar o sexo biológico institui no mesmo movimento as instancias de poder em que se politizam as relações humanas. Verdadeira mulher, verdadeiro homem, estas imagens estão atreladas ao verdadeiro sexo, a este construto ideal, a este aparato anatomopolítico que dobra a multiplicidade do humano em patamares binários de verdadeiro/ falso, de dominador / dominado, de referente e diferente.”

Cabe ressaltar que muitas feministas utilizavam a noção de “sexo social” como forma de desnaturalizar a posição do sexo como algo natural e afirmar sua posição social, pois houve um momento – e aí as feministas construtivistas caem novamente na metafísica – em que se dizia que o gênero seria cultural e o sexo natural.

Paul Preciado fala algo semelhante sobre:

“o sexo e o gênero deveriam ser considerados como formas de incorporação prostética que se fazem passar por naturais, mas que, em que pese sua resistência anatômico-política, estão sujeitos a processos de transformação e de mudança constantes”

A abolição de gênero não se trata de uma mudança de consciência, mas de mudanças materiais, logo, é necessária uma mudança do regime de organização social. Assim como a intenção da revolução socialista não é apenas a eliminação do privilégio de classe, mas a distinção de classe econômica em si mesma, a abolição de gênero não se trataria apenas da eliminação dos privilégios de gênero – sorry, esquerda liberal -, mas também o sistema binário de gênero, de sexualização do mundo [1]. Essa “mudança de consciência” costuma ser uma atitude individualista assumida por autodesignadas “feministas radicais” (essencialistas de gênero), desprezando muitas das vezes a dimensão coletiva, que é o que importa. Como a consciência não é uma substância metafísica, e sim material, social e historicamente circunscrita, se você não muda as condições materiais, consequentemente cê não muda consciência alguma. Beleza?

Ser uma pessoa trans e ser abolicionista de gênero não é nenhum absurdo. A possibilidade de existência e cosmopercepção que temos neste momento é binária, portanto, ou se é tido socialmente como homem ou como mulher. Isso não significa que pessoas não-binárias não existam, e sim que, até mesmo elas terão que recorrer a uma linguagem binária para se afirmarem neste regime de organização social. É como ser uma pessoa socialista que existe dentro do capitalismo – terei que abrir mão do meu tempo livre, vender minha força de trabalho, juntar dinheiro para sobreviver, comprar coisas, e por aí vai.

Isso não significa que abolição de gênero implicaria uniformidade, que não haveriam mais variações (suspeito que isso tenha algo a ver com o monismo cristão). Muito pelo contrário, a abolição de gênero só se é realizável pela proliferação de variações, de disposições morfológicas varias, de expressividades variadas, e não de monocultura aplicada aos modos de viver. Querer abolir gênero afirmando o sexo/genital como evidente é como apoiar capitalismo sustentável/verde/sustentabilidade, quando muito bem se sabe que a exploração é a base do capitalismo.

[1] A respeito disso a Shulamith Firestone fala o seguinte:

“O objetivo final da revolução feminista deve ser […] não apenas a eliminação do privilégio masculino mas da distinção de sexo em si mesma: diferença genital entre seres humanos não mais importaria culturalmente”


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