Transição – 66 dias

Texto de Alice Marcolino.

[Transição – 66 dias]
Das dores que não escorrem pelo ralo da pia
ou da nudez pra além da imagem
ou me manda nudes?

Hoje escrevo com dor. Dores somadas, somatizadas, engolidas, choradas em silêncio e sem palavras. Só, com o corpo. Agora a lágrima vira letra e quem sabe com isso pese menos. Porque voa como carta, pra que alguém, mesmo que virtualmente, pegue na mão e me abra. Nua, na letra, da imagem que me dói.

A imagem que eu vi crescer como um falo brilhante e empoderado numa passarela ao som de flashes e sob os olhos do mundo inteiro. A imagem que foi usada para o marketing de uma marca que queria causar no mundo, que queria chocar, que queria ganhar pela polêmica, como disse em entrevistas. Apesar de no discurso de abertura do desfile haver uma suposta militância, diversos problemas mostraram que a marca nem sequer teve o trabalho de consultar uma mulher trans antes de levar ao mundo o discurso que fazia em nome delas. Será mesmo que o que importa no mundo da moda é quem veste a roupa? Falsa inclusão, onde quem entra na roupa é só uma imagem. Vendida, vestida, maquiada, mascarada.

Uma imagem que não está só no palco, mas também no backstage. Constantemente desacreditada pelos olhos das companheiras-competidoras. Entre algumas garotas, havia uma batalha de lâminas silenciosas – mas não menos afiadas – para decidir quem era a mais bela. A mais bela dentre as belas. E dentre as belas, havia as não tão belas assim. As que nem sequer mereciam o olhar de competição. Como eu, sendo olhadas com a óbvia questão “o que é que você está fazendo aqui?”: as que ainda tinham traços “masculinos” ou as que estavam no começo da transição, as que não tinham o privilégio da única coisa que uma garota trans pode almejar: a passabilidade inquestionável. Inabalável. A passabilidade do gesto, do rosto, do corpo, da voz. A passabilidade da imagem.

Pois passabilidade tem também valor de mercado. É o que vale na hora da menina trans ser contratada, na hora da menina trans ser respeitada, na hora da menina trans ser desejada.

E a imagem insiste, mesmo na dor.

E eu choro quando a maquiagem escorre e vejo no espelho nada mais que alguém tentando ser menina, buscando desesperadamente no olho do outro sua legitimação. Buscando no outro o reconhecimento da imagem que eu tento com tanto custo construir. Por enquanto, me sinto máscara, mentira, farsa. Sou o cabide que vale menos. Pois por baixo da roupa, não sou a imagem que quero ser. Então me escondo nos flashes, nas selfies, nas roupas. Ou pelo menos tento.

E no banho, nua, vejo o sonho dissolvido descendo pelo ralo. O sonho que persiste, na esperança de que um dia a imagem venha cobrir também a nudez.

E quando entrego imagem ao outro, principalmente aos homens que desejo, não sou mais que objeto. Não sou mais que mentira, que tenta desesperadamente ser desejada pelo que não tem. Pois quando sou desejada pelo que tenho, a imagem não cola. Não fecha com a imagem que tenho de mim. Não sou eu. Ou é o eu que eu não quero ser. E aí, o abismo. Ou, até mesmo, o estupro.

….

Feito Narciso que se afoga no ralo.
Mas há como não se afogar? Há como não ser Narciso em dependência da imagem?

Talvez…

Nesses pequenos momentos onde a gente se entrega feito carta, mais que corpo.

No olho, no toque, no beijo e, principalmente, na fala, na escuta e no silêncio cheio de ditos do outro.

Que te reconhece porque te vê numa nudez pra além da imagem…

Imagem: Andressa Crossetti.


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