Texto de Ana Júlia:
Conversando esses dias com uma amiga trans, entramos no assunto da transição tardia, ou seja, daquelas travestis ou transexuais que decidem se transicionar na meia ou na terceira idade. Segundo o ponto de vista dela, se transicionar muito tardiamente quando a testosterona já agiu de forma plena no corpo, completando todas as características masculinas, seria de uma “coragem” imensurável pois, ainda segundo ela, uma vez “velha”, com todas as características secundárias masculinas estabelecidas, dar início ao processo hormonal, seria “uma perda de tempo”, afinal, a travesti que decidisse pela sua identidade de gênero feminina já na meia ou terceira idade não atingiria uma transição satisfatória, onde os resultados feminilizantes seriam pouco ou nulos. E mesmo que houvesse esta transição, a travesti ou transexual “deveria” pensar no quão “ridícula e caricata” ficaria, sofrendo assim, muito mais transfobia e deboche pela sociedade, uma vez que todos vivemos em sociedade, que “não se preocupar com o olhar ou crítica do outro seria muita hipocrisia, etc”. Ainda sob a ótica dela, já que uma pessoa passou sua vida inteira como gay, que assim permanecesse pelo resto da vida, até para sofrer menos preconceito. Se assumir transexual na meia ou terceira idade, segundo ela, ainda mais sendo uma travesti pobre, sem recursos para investir em plásticas, silicones, para se aproximar minimamente da imagem desejada, seria um tiro no pé, um motivo a mais para sofrer.
Neste momento expus meu ponto de vista, disse a ela que, independentemente se uma pessoa assume-se trans na terceira idade, a transfobia e as adversidades viriam de qualquer modo, não a isentando de nada. Cada pessoa tem seu tempo e se fulana ou cicrana decidiu que esse era o momento para, enfim, assumir-se uma mulher trans, quem estaria apto para julgar? Afinal, cada indivíduo traz consigo suas particularidades, suas feridas, seus traumas, seus sonhos e seus desejos. Cada pessoa sabe de si.
Ainda expondo meu pensamento, disse que se vivêssemos para agradar ou nos encaixar no que o outro quer, não viveríamos, afinal, é impossível a tarefa de agradar aos outros. E, ainda, partindo da premissa de que ninguém se importa pela nossa existência e muito menos pagam nossas contas todo mês, a decisão de cada um é muito subjetivo e deve ser respeitado. Se fulana ou cicrana está “velha” demais para transicionar-se e acabará sendo chacota na boca do povo, que travesti ou transexual nunca foi e é chacota? Que travesti ou transexual nunca passou/ passa pela transfobia de cada dia, sendo ela passável, bela, feia ou não passável? Sobre fulana ou cicrana assumir-se trans na terceira idade sendo pobre, que travesti ou transexual assumiu sua identidade sendo rica ou tendo nascido num berço de ouro?
Minha amiga me passou a sensação de que a opinião alheia rege suas decisões, suas escolhas, quando a sociedade está “cagando” pra ela. Querer se encaixar nos padrões vigentes para “ser minimamente” aceita é burrice. Que sociedade brasileira é essa que aceita e acolhe uma mulher trans mesmo sendo essa passável e padronizada? Uma vez descoberta sua transexualidade, é destratada tanto quanto as demais. Não há espaço nesse mundo cisgênero para transexuais, e querer se enquadrar nos padrões aceitáveis para não ser alvo de piada ou chacota é alienação, pois VOCÊ SERÁ CHACOTA, tenha a transexual peito, bunda ou não.
A vida é um sopro, e descobrir sua verdadeira identidade e poder assumi-la enquanto estiver viva é uma das melhores conquistas. Sobre o olhar do outro, pouco importa. Aliás, NADA importa. A transfobia estará sempre aí, e a hora de ser feliz é AGORA. O olhar do outro diz mais sobre o outro do que sobre nós, portanto, a vida e o tempo não esperam, bora viver enquanto estamos aqui.
Imagem: Twitter de Ana Carolina Apocalypse.
***
Comentário de Raissa Neves a respeito da publicação de Ana Carolina:
Não existe idade para você se reencontrar. Caso isso aconteça e você já tenha uma idade mais avançada comparada as outras meninas, permita-se viver. Você é linda do seu jeitinho e a sua idade só é um número. Fico feliz em ver vocês se descobrindo e se realizando! É como se fosse eu em vossos lugares. Parabéns, Ana! És muito bem-vida ao seu lugar e com as suas irmãs.