É só a partir dos ditos trânsitos de gênero – posições e identificações transgêneras – que o gênero se torna visível. Até então, o gênero na sua posição cisgênera é tido como transparência. Transparência é sinônimo de obviedade, das coisas que “são porque são”, ou seja, naturalizadas. Ver masculinidades e feminilidades cisgêneras é diferente de ver masculinidades e feminilidades transgêneras. Quero dizer, existe uma forma de significação que é histórica que toma o gênero diferentemente de acordo com posições cis e trans. De fato, a transparência da cisgeneridade não é absoluta, ela é relativa. Assim como a opacidade transgênera não é absoluta, ela também é relativa. Mesmo sob o prisma cisgênero é possível observar inúmeros equívocos do gênero. Equívoco é quando o gênero – mesmo sob uma perspectiva ciscentrada – mostra-se como incoerente a si mesmo, passível de contradição. Ou seja, o equívoco se mostra quando algo de inusitado se dá a ver. As formas de resistência ao patriarcado são possíveis pois gênero é passível de contradição. O feminismo até então trabalhou politicamente esta contradição, mesmo se limitando – majoritariamente – ao gênero em sua posição cis. Mas a perspectiva ciscentrada tem seus limites, seus pontos cegos. É a partir da transgeneridade que o gênero se mostra em outra forma de opacidade. Uma opacidade total em relação ao próprio gênero, eu diria. O transfeminismo se incumbe de trabalhar politicamente estas outras questões contraditórias. A questão então está no movimento das relações de alteridade.
Parto de uma perspectiva não essencialista para entender as relações de alteridade. Nesta perspectiva não essencialista, o Outro é constitutivo do Mesmo. Ou seja, a produção da coerência e inteligibilidade do Uno e do Mesmo necessita da zona do interdito, que é ocupada pelo Outro. Esta região de interdito estabiliza – neste sentido, é constitutiva – da própria unicidade e coerência do sistema do Um. O Outro abarca a divisão e a contradição, porque ele não é uno. É através do Outro que o novo irrompe. Esta região do interdito, no que se refere às questões de gênero é ocupada pelas mulheres e pelas pessoas transgêneras. Mulheres transgêneras seriam o cruzamento de duas regiões distintas. Há, contudo, movimento na relação de alteridade.
O Mesmo não pode permanecer fixo – o mesmo – pois o Outro permite contestação, resistência, deslocamento e revolução através do movimento de abertura ao novo. O novo, contudo, é possível partindo das contradições do velho. A abolição de gênero do feminismo radical peca em compreender este processo, pois só consegue compreender a revolução como novo, desvinculado do próprio sistema (velho) que o engendrou. Conceber o novo deslocado do sistema do velho é chafurdar no idealismo, pois se trata tão somente de uma utopia.
A zona de interdito que tem sido ocupada pelas mulheres foi analisada “pela primeira vez” por Simone de Beauvoir. Ocupar a posição de interdito é o que constitui determinado grupo como Outro. Há divisão nas mulheres para garantir a unicidade imaginária para os homens. Por esta construção de unicidade ser imaginária, ela é passível de ser contestada, partindo de suas próprias rachaduras.
A zona de interdito também tem sido ocupada pelas pessoas transgêneras para garantir a própria unicidade (imaginária) do gênero em suas posições cis. Com isso quero dizer: o gênero necessita do interdito (impossível) transgênero que garanta sua própria coerência e unicidade. O feminismo radical neste aspecto falha em compreender o funcionamento desta interdição. O interdito aparece de forma imaginária como impossível. Por isso tanto se considera a existência de pessoas trans* como impossibilidades lógicas. Mas aqui entra a confusão entre imaginário e real. Não é porque imaginariamente temos a impressão da não existência de pessoas trans que a formação social é indiferente a existências destas pessoas. Ao contrário, a formação social, ao ler uma travesti como sem-sentido do gênero não a coloca numa espécie de pedestal do impossível, tal como se ela nem ao menos existisse. A formação social lê o impossível não como não-existência, mas sim como passível de ser exterminado. A formação social não é indiferente ao que ela considera impossível (muito pelo contrário!). Esta diferença é extremamente importante de ser pontuada. Só assim se entende o extermínio da população transgênera não como assassinatos de indivíduos, mas como genocídio de um grupo populacional. O feminismo radical confunde impossível com não-existência – sobredeterminando o real pelo imaginário – o que faz cair no equívoco de compreender que uma travesti seja vista e tratada pela formação social como um homem. Já disse no meu texto “Socialização de quem, cara pálida?” sobre a importância de não se tomar certo imaginário – extremamente circunscrito – sobre transgeneridade como o próprio real.
Voltando para a questão inicial: é possível visibilidade sem alteridade? Aqui se trata de entender que tipo de visibilidade e que tipo de movimento que se estabelece nas relações de alteridade. Ver o outro como Outro é extremamente fácil. Ver o Outro como movimento em direção ao Mesmo é mais difícil. No primeiro caso, temos muita visibilidade, mas pouco ou nenhum empoderamento. No segundo, a visão se ofusca pois o novo emerge da zona do interdito deslocando posições e sentidos. Nesta direção, diria que é mais fácil reproduzir o sistema patriarcal do que transformá-lo. Mas é através da reprodução que se tangencia o novo, a possibilidade de mudança.
Um paralelo interessante possível de se fazer é entre ideologia e gênero. Temos duas concepções sobre a ideologia: a negativa e a positiva. Diria também que se tratando de gênero, temos também a concepção negativa e positiva. Respectivamente, feminismo radical tem a concepção negativa e o transfeminismo, a positiva.
Na concepção de ideologia positiva, não há exterior à ideologia. Neste sentido, não existe, como na concepção negativa, conteúdos, enunciados e práticas que seriam ideológicos e outros que seriam não ideológicos. Toda prática, todo discurso (veiculado através de atos, enunciados, etc) são ideológicos na concepção positiva. O marxismo não é um discurso “não ideológico” em contraposição ao liberalismo, por exemplo. Ideologia, nesta perspectiva, não se opõe a verdade. Ideologia também não é determinado conteúdo; ela é, sim, a forma de produção de um conteúdo (ou sentido).
Da mesma forma podemos pensar o gênero. Gênero na perspectiva negativa precisa ser abolido. Mas na perspectiva positiva, isso faz tanto sentido quanto querer abolir a ideologia e atingir “conteúdos verdadeiros”. Ou seja, não faz sentido. Gênero não é um conteúdo: não é um batom, pelos grossos, saias, shorts, salto-alto, depilação, musculação, futebol, cerveja, *insira aqui qualquer coisa lida genericamente que seja passível de ser destruída*. Gênero é a forma de produzir conteúdo, ou seja, é a forma como determinados artefatos e práticas são significados enquanto masculinos ou femininos. Não é possível abolir a “forma de significar”, pois não é possível destruir o sentido em suas relações. A resistência, nesta perspectiva, não se trata de abolir a significação, mas tencioná-la em suas contradições. Desta forma, não é possível escapar ao gênero, assim como não se escapa à ideologia. Foi partindo desta perspectiva que escrevi o texto “O feminismo radical e o barão de Münchhausen”.