Tropos Transfóbicos Nº 7 – Socialização infantil

[N.T. As siglas utilizadas no texto foram traduzidas e estão devidamente explicadas no fim do texto. Os grifos em itálico são da autora; os grifos em negrito são da tradutora].

Por Lisa Harney

Tradução: Hailey Kaas

Eu escrevi isso em algum outro lugar, como resposta a uma questão sobre homens trans e privilégio masculino. A resposta, em específico, se dirigia para alguém que sugeriu que homens trans não recebem privilégio masculino por que são aparentemente socializados como meninas e treinados para serem mulheres. Com isso em vista, a maior parte desse texto é uma resposta a esses comentários.

Além disso, coloquei links para o little light’s Fair [blog em inglês] e para um artigo sobre sexismo e pessoas trans [em inglês] relacionado com as experiências da Dra. Joan Roughgarden e do Dr. Ben Barres no que diz respeito à transição, privilégio masculino e sexismo.

A questão da socialização é um daqueles tópicos de discussão bizantina e perda de tempo, e focar-se na socialização como se todxs fôssemos programadxs como pequenos computadores na infância durante nosso crescimento, como se a socialização de gênero fosse direcionada a nós como mísseis teleguiados, e que crianças CAFAB [Coercitivamente designadx mulher ao nascer – CODEMAN] recebem apenas socialização direcionada para meninas e crianças CAMAB [Coercitivamente designadx homem ao nascer – CODEHAN] recebem apenas socialização direcionada para meninos, e todxs nós trans somos, então, como pessoas cis compartilhando nossa CASAB [Socialização Coercitivamente designadx ao nascer – SOCDAN] até o dia que começamos a transicionar.

Isso não só não é verdade como também é irrelevante. Nessa linha, pode-se argumentar também que deus implantou instruções no seu cérebro acerca do seu gênero.

Primeiramente, eu argumentaria que a natureza da socialização muda ao longo do tempo. Por exemplo, eu duvido que uma criança de dois anos esteja sendo socializada para apoiar cultura do estupro. Eu suspeito que a maioria da socialização nesse caso envolva treinamento para ir ao banheiro, brincadeiras e assistir a vídeos infantis. Claro, pode-se argumentar que está na cultura – e de fato está. Mas isso é algo que ambas as crianças CODEHAN e CODEMAN recebem. A única diferença é se as crianças se percebem ou não como alvos de atitudes que estão por trás dessa socialização. Ate porque os homens não mantêm uma patente exclusiva sob culpabilização das vítimas mulheres para casos de estupro ou violência doméstica, não é mesmo?

Todxs somos socializadxs para uma cultura machista. Somos ensinadxs que ser homem significa X e que ser mulher, Y. Não há um “lá fora” para nenhum de nós. Mulheres, assim como homens, são socializadas para serem machistas.

A discussão sobre o que essa socialização significa, no entanto, sempre coloca crianças (e eventualmente pré-adolescentes, e depois adolescentes) como receptorxs passivxs que nunca reagem àquela socialização. Nós nem discutimos se as crianças que recebem essas mensagens percebem-se como o alvo, o instigador ou ambos. Não falamos sobre o que essas mensagens significam para crianças trans que podem não se perceber como possuindo um gênero, ou podem se perceber como possuindo um gênero que difere de sua SOCDAN.

Por exemplo, eu vi várias mulheres cis presumindo que meninas trans quando eram crianças e adolescentes, interagiram com imagens de ideal de beleza (modelos ou capas de revista, por exemplo) da mesma forma que meninos cis, e não percebem que esse ideal tem um grande impacto sobre nós e nossa autoimagem, e que isso combinado com disforias de corpo/gênero é uma das razões pelas quais somos potenciais suicidas. Eu conheço várias mulheres trans que na pré-transição desenvolveram diversas compulsões alimentares com o objetivo de desenvolver uma aparência mais feminina.

Socialização não é um privilégio. É um meio pelo qual o privilégio é perpetuado. Privilégio é baseado em várias coisas, a maioria relaciona-se em como você é percebidx e como outras pessoas te tratam. Homens trans que passam como cis recebem privilégio masculino. Muitos homens trans que nem sempre passam como cis recebem privilégio masculino, dependendo da situação e contexto.

Da mesma forma, mulheres trans durante ou depois da transição que passam como cis, não recebem privilégio masculino. Mas mulheres trans que são lidas como trans também não recebem privilégio masculino, em nenhum contexto, no geral. Ser uma mulher trans não é algo sustentado culturalmente, porque ser mulher não é algo sustentado culturalmente da mesma forma que ser um homem é sustentado culturalmente, e parece que em vários (mas não em todos) contextos, homens trans recebem um “passe-livre” em coisas que mulheres trans não, muitas vezes de forma explícita. Eu já ouvi Adam Carolla dizer isso explicitamente no Lovelines mais de uma vez, anos atrás. Eu ouvi feministas cis (feministas radicais e outras de linhas diferentes) fazerem caracterizações grosseiras acerca de mulheres trans e caracterizações mais amenas de homens trans, enquanto eram transfóbicas com ambxs. Eu ouvi homens trans falarem coisas do tipo.

Não estou argumentando aqui que homens trans recebem coisas boas para todo o sempre e que mulheres trans recebem só coisas ruins sempre, mas sim que existe um privilégio em ser vistx como alguém indo em direção à masculinidade (de acordo com perspectivas cis) comparado com ser vistx como alguém indo em direção à feminilidade (novamente, de acordo com perspectivas cis) e a socialização não é o fator central em ambos os casos.

Eu gostaria de completar que nós não discutimos as pressões diárias em relação à conformidade de gênero e à cisnormatividade, em relação às narrativas corretas, em relação ao cumprimento das expectativas das pessoas cis no que diz respeito a como homens e mulheres devem ser, e como isso nos afeta diariamente.

Poder – nesse caso sexismo, heterossexismo, cissexismo – se normatiza através da constante execução, e as mulheres – tanto cis quanto trans – estão sempre falhando na feminilidade. Para as mulheres trans, essa falha perceptível tem consequências (cissexistas) mais severas e padrões de imposição mais altos. Mulheres trans que são muito femininas são ridicularizadas por tentarem demais, e por isso são consideradas, na verdade, homens.  Mulheres trans que não são femininas o suficiente ou mesmo as que são masculinas, são ridicularizadas por não tentarem o suficiente, e por isso são consideradas, na verdade, homens.  Mulheres trans que são lésbicas são ridicularizadas por falharem em sua “condição de ser mulher”, porque as expectativas são que mulheres se atraiam por homens.

Os psiquiatras nos dão dress codes e maneiras de se comportar. Nós damos a eles as histórias que eles desejam ouvir – cisnormativas, heteronormativas, narrativas que estabelecem nossos gêneros como estáticos. Várias vezes nós cumprimos de fato um dress code apenas para sermos atendidas dentro de nossa condição trans. Mulheres trans são disciplinadas nos modos de se vestir, no comportamento e orientação, assim como qualquer outra mulher cis, e as penalidades podem ser desde violência, negação de atendimento médico necessário, até o erro ou apagamento dos nossos pronomes e/ou gêneros de forma constante e maldosa. Quando passamos como cis, o melhor que recebemos é machismo e os julgamentos a partir dos olhares masculinos. Não importa se estamos nos comportando com o que quer que sejam ou deveriam ser as tais “socializações masculinas” ou “direitos masculinos”, nós não estamos recebendo nenhum privilégio masculino.  Nós somos mulheres, ou somos coisas sem gênero falhando tanto na “condição de ser mulher” quanto na de “ser homem”.

E, sabe, quando você lida com isso todos os dias isso irá te afetar. Eu fiz quatro anos de teatro no ensino médio, e nesse período eu aprendi como falar e projetar minha voz, e basicamente me fazer ouvida – eu era péssima nisso até que meu primeiro professor de teatro se colocou para me ensinar como fazer isso. No meu primeiro ano fora do ensino médio, eu morei com outra mulher trans que me criticava incansavelmente por “falar alto demais” e durante anos eu perdi tudo o que tinha conquistado. Não deu nem um mês até eu já estar falando bem baixo novamente. Não podemos subestimar o impacto do machismo diário ou do privilégio masculino, e como isso influencia na socialização independente da sua idade. E isso acontece com todas as mulheres adultas, nos policiam todos os dias em como ser mulher, dizem como devemos nos comportar, vestir, falar. Todo mundo faz isso – homens e mulheres – ambxs fazem isso com mulheres. Isso ocorre em todos os níveis. Está difundido.

Socialmente e culturalmente, homens são incentivados enquanto homens. Mulheres não são incentivadas enquanto mulheres. Sim, existe policiamento de gênero direcionado a homens, mas também existem coisas como o Old Spice Guy, que valoriza e apenas ridiculariza levemente a hipermasculinidade*. Mas olhem para os comerciais da Axe. Olhem para os filmes de ação. Os programas de TV de todos os tipos. As revistas. Olhem para tudo.

Isso está para além da transição. Os andaimes sociais para a identidade feminina que deveriam ajudar uma mulher trans a ser tornar uma mulher de acordo com as definições sociais, são estruturalmente o oposto de um apoio. O processo pelo qual você se torna mulher envolve tornar você um abjeto, ensinar que apoio é algo que mulheres não merecem; e isso é algo que mulheres trans têm dificuldade de se defender, pois ser trans também está envolvido num status de abjeção – seu sucesso é determinado através da aprovação de outrxs.

No entanto, embora homens trans também sejam policiados enquanto homens, e têm de cumprir com as narrativas trans e tentar ser “adequadamente” homens, ser homem é algo valorizado. A masculinidade (e considerando que homens são associados/relacionados com masculinidade) é valorizada e admirada, ao contrário da feminilidade e de ser mulher. Enquanto ser trans é, como eu disse previamente, um status de abjeção, ser homem é exaltado como algo bom, a melhor de todas as opções.

Esse contraste afeta homens e mulheres trans de diferentes formas. Homens trans recebem uma liberdade e respeito que mulheres trans não recebem. Isso acontece diariamente. Se você ganha $100 por dia, durante 30 dias, você esperaria ganhar esses $100 no dia 31? Ou você confiaria na experiência da sua infância, quando o dinheiro era mais apertado? E quanto a receber esse dinheiro por 365 dias? Você o esperaria no dia 366? Os sistemas imediatos de punição e recompensa superam os sistemas do passado?

Não é possível reduzir nossa socialização aos nossos primeiros 18 anos, primeiros 12 anos, aos nossos primeiros dois anos (como eu vi uma pessoa tentar fazer recentemente). Nós não podemos discutir pessoas trans e privilégio masculino de forma coerente enquanto tratamos pessoas trans como se fossem pessoas cis, enquanto ignoramos nossas vidas durante e após a transição, nos focando estritamente na pré-transição. Isso é cissexismo e direto sexismo – tentar excluir experiências inconvenientes à suposição de que mulheres trans são na realidade supostamente homens e homens trans são na realidade supostamente mulheres.

Nota: Eu não desejo que ninguém tire dessa postagem a ideia de que homens trans não experienciam sexismo. Eles experienciam sim, especialmente antes e durante a transição. Existem diferenças em como a misoginia se manifesta em relação a mulheres trans em virtude de como a interseção transfobia-misoginia difere para homens trans e mulheres trans.

*Nota²: Jane LaPlain aponta que essa parte está relacionada com brancura, nesse comentário [em inglês].

N.T. CAFAB: Em inglês: coercively assigned female at birth. Tradução: Coercitivamente designadx mulher ao nascer. A sigla correpondente é CODEMAN.

CAMAB: Coercively assigned male at birth. Tradução: Coercitivamente designadx homem ao nascer – CODEHAN.

CASAB: Em inglês: Coercively socialized at birth. Tradução: Socialização Coercitivamente designadx ao nascer – SOCDAN.

Texto original: http://www.questioningtransphobia.com/?p=2884

Agradeço Juno Cremonini e Nicholas Rizzaro pela ajuda na tradução.


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