Amanhã é dia 20 de novembro. Dia da memória trans* e da consciência negra. Uma data instigante para nos atentarmos para a intersecção entre gênero e raça. O que nos remete para as vivências e vozes das pessoas trans* negras. Em especial, das travestis: ponto nodal onde estas e outras intersecções se cruzam. E isto significa também pensar sobre o estatuto que a memória ocupa frente nossas vivências trans* e negras (cabe ressaltar meu local de fala: sou uma mulher trans* branca).
Para as pessoas trans*, memória e esquecimento são campos intimamente ligados de uma forma especialmente traumática. Se nos propormos relembrar algo, significa que estamos resistindo contra certa forma de esquecimento, ou o esquecimento de algo. E aqui o aspecto do esquecimento, para nós, significa de forma cruel.
É certo que toda memória social lida com o esquecimento para se constituir. Não pressuponho a existência de uma memória linear, que seja mero acúmulo de informações, como se a história, assim como a memória social (e a memória de um povo ou minoria), tivesse um fim em si mesma e fosse tão somente um acúmulo unívoco e quantitativo em direção ao “progresso da civilização”. Ao contrário, a memória é viva e movente: isto significa que ela trabalha inúmeras disjunções para existir. Ela não é isenta de contradições. A memória é, portanto, necessariamente o esquecimento de algo em função daquilo que se irrompe como significado de algo memorável. Ela é histórica e equívoca.
Mas o que acontece quando a memória é puro esvaecimento e fratura? E quando nem ao menos temos a ilusão de um todo mais ou menos coerente e o que nos passa é tão somente o efeito de silenciamento? É neste sentido que a memória para nós trans* é dolorida: nos lembramos, sobretudo, dos nossos assassinatos. Somos instadxs a lembrar para não esquecer. E ocupar esta posição é dolorida. Queríamos poder esquecer. Mas de toda forma, esquecer, aqui, também significaria silenciamento. Esquecer significa também negar a possibilidade da existência e resistência.
Por isso lembramos que o Brasil é o país em que mais se assassina pessoas trans* no mundo. Quando ocupamos esta posição – de lembrar o que gostaríamos de esquecer – o nosso próprio lugar enquanto sujeitos no mundo é abalado. É uma posição paradoxal: ao buscar o reconhecimento da nossa história, nos desestruturarmos enquanto sujeitos. É uma posição não cômoda, uma não-posição que é de todo o caso necessariamente ocupada. A própria memória nos coloca neste não-lugar, um lugar do impossível. O desafio, então, é saber lidar com a memória, de forma a não varrermos a sujeira para debaixo do tapete. Não se trata de fingir que a história e a memória não existem. Esta não é uma opção, igualmente, para nós. Trata-se de tomar uma posição a partir da ausência de um lugar habitável. A memória ocupa um lugar paradoxal e necessário na tomada de posição política para nós: a consciência transgênera. Tomar uma posição enquanto sujeito significa tomar consciência de si.
Eu, enquanto pessoa branca observo o resgate que o movimento negro traz de sua memória e história. Observo similaridades entre a luta trans* e negra. Tento trabalhar minha alteridade, ao mesmo tempo em que crio identificações. Além de similaridades, o movimento negro pode nos fornecer valiosos ensinamentos para o movimento trans*. Há similaridades quando vejo que não se trata do reconhecimento da memória enquanto uma simulação de um mundo utópico – sem violências. Lembrar do cotidiano violento nos causa sofrimento psíquico. Este fato não pode ser apagado demagogicamente. Mas sobretudo a consciência negra diz respeito à busca de uma positividade. Não se trata de resgatar a memória meramente como pura fratura e dor. Ela nos ensina que trata-se também de orgulho e resistência.
É neste sentido que o trabalho com a memória deve ser encarado como um trabalho que leve em conta a historicidade dos sentidos. A memória é o nosso trabalho social dos sentidos. Não se trata de negar a história, fingir que a memória não pesaria sobre nossos ombros. Os sentidos não podem ficar estagnados na história, seja devido à negação da história, seja igualmente por um determinismo da estrutura (histórica). Os sentidos, ao contrário, precisam fluir e serem trabalhados no equívoco da história. Os sentidos sobre as opressões, mas também os afetos e resistências. É assim que espero que nosso movimento de pessoas trans* – mesmo ainda parecendo tão tímido, esparso e embrionário – se fortaleça e siga. E a história e resistência da população negra, neste sentido, nos dizem muito a respeito.